Folha de S. Paulo


'Febre de princesas' impulsiona escola e gera oficina de 'desprincesamento'

Escola das Princesas

Quando abrir as portas do salão cor-de-rosa e dourado para sua primeira turma de alunas, em dezembro, a filial paulistana da franquia Escola de Princesas já terá um projeto antagonista na cidade: as oficinas de "desprincesamento".

Criada pela psicopedagoga mineira Natália de Mesquita, em Uberlândia (MG), a Escola de Princesas gerou controvérsia entre educadores e feministas ao anunciar que pretende formar "princesas modernas do mundo real" a partir de aulas de etiqueta social, maquiagem, culinária e organização, além de noções de autoestima e orientações para "o passo mais importante da vida de uma mulher": o casamento.

Já as oficinas de "desprincesamento" replicarão por aqui o modelo criado em Iquique, no Chile, por um grupo de sociólogos e pedagogos, para "libertar as meninas de concepções femininas limitadoras", os chamados estereótipos de gênero, que "alimentam desigualdades profundas" entre homens e mulheres. O projeto foi encampado pelo Ministério da Justiça chileno, que nacionalizou as oficinas por meio dos serviços de atenção à infância.

Marcus Leoni/Folhapress
A Escola de Princesas pretende promover uma espécie de curso de boas maneiras e utilidades domésticas
A escola pretende promover uma espécie de curso de boas maneiras e utilidades domésticas

"Ficamos indignadas que, em 2016, exista uma proposta de educação para meninas que não é emancipadora porque não dá liberdade para a ela escolher seus papéis e na qual o grande objetivo da vida da mulher é o matrimônio", diz Larissa Gandolfo, pedagoga e professora de filosofia e uma das responsáveis pelo "desprincesamento" no Brasil.

A psicopedagoga Natália de Mesquita defende seu método, que teria surgido em um sonho. "As críticas vêm de quem pega num ponto e não conhece o trabalho como um todo. Não é um retrocesso. A gente fala que as meninas são princesas empreendedoras. A mulher não precisa abrir mão de ser mãe, de ter um relacionamento ou de cuidar da casa por causa da carreira. A mulher pode ser bem-sucedida em todas essas áreas", diz.

Heloísa Buarque de Almeida, professora de antropologia da USP, pondera que a princesa é uma "produção de feminilidade tradicional e antiga " e avalia que "existem muitas maneiras de ser mulher no mundo". "Não precisamos estabelecer um padrão, ainda mais num momento de retrocesso político ligado a questões de costumes."

Para a apresentadora Silvia Abravanel, que levou a franquia para São Paulo, a princesa formada na escola não é antiquada. "É uma princesa moderna. Ela pode usar uma calça jeans, mas seu tênis vai estar sempre limpinho", explica.

Psicóloga, consultora em educação e colunista da Folha, Rosely Sayão vê neste padrão uma restrição à infância. "Criança tem que brincar, e quem brinca tem que se sujar. Ficar mais preocupado com a aparência do que com a brincadeira prejudica a criança", diz. Segundo ela, o estabelecimento não deveria ser chamado de escola. "Um negócio comercial deste tipo estimula preconceitos", avalia.

ETIQUETA

Para Abravanel, que fez curso de etiqueta na adolescência, a Escola de Princesas faz as meninas "viverem um conto de fadas". "É muito legal essa coisa de se portar à mesa, de sentar como uma 'lady', de fazer movimentos sutis, de docilidade, de amabilidade." Segundo ela, as prendas ensinadas na escola "preparam as meninas para se virar no mundo".

"Vender sonhos é coisa de comerciante, mas educar um pouco as pessoas não faz mal", diz Costanza Pascolato, consultora de moda, estilo e etiqueta, que avalia como positivo o ensino de competências sociais. "Na minha época, etiqueta era ensinada em casa. Mas as pessoas hoje ou não têm noção ou não têm tempo para isso."

A consultora de etiqueta Claudia Matarazzo explica que a revolução cultural dos anos 1960 e 1970 rotulou como careta o ensino de etiqueta. "Os filhos daquela época foram criados sem isso e hoje sentem falta dessas referências. Já tive de criar vários cursos de boas maneiras a pedido de empresas", conta.

Para ela, o ensino de certas habilidades não é frescura nem tem a ver com moral ou sexualidade e não deve se restringir às meninas. "Se os meninos também não forem treinados, onde essa menina vai encontrar um príncipe? O mundo tem cada vez mais sapos."

Costanza pondera a grita feminista contra os ensinamentos da escola. "Saber um pouco de tudo faz parte da educação. A menina não pode ser feminista e fazer um arroz bem feito?", questiona. Ela acredita, no entanto, que exaltar o casamento como ponto alto da vida da mulher é como "espalhar histórias da carochinha". "Nenhum casamento é um conto de fadas."

PRINCESAMENTO

Cinderela, Ariel, Branca de Neve, Aurora, Bela, Jasmin, Mulan e Tiana formam o famoso time Princesas da Disney que há pelo menos cinco anos viraram mania infantil por meio de desenhos e de uma série de produtos e brinquedos. Nesse contexto, a Escola de Princesas, criada há pouco mais de três anos, foi um sucesso imediato e se multiplicou em quatro unidades. "Esperava atender 150 meninas no primeiro ano da escola, mas recebi 150 alunas apenas no primeiro mês", conta Mesquita.

O curso principal da escola, chamado Vida de Princesa, inclui seis módulos, que vão da identidade da princesa ao casamento, passando por etiqueta, estética, organização e orientação sexual.

"A gente enfatiza o conceito do coração, dizendo que não é a aparência, o vestido ou a conta bancária que faz da menina princesa. A princesa de verdade tem valores no coração e isso eleva a autoestima", diz a psicopedagoga mineira.

Na chegada para uma tarde de princesas, no endereço da franquia, na zona sul da capital paulista, um grupo de meninas discorreu sobre o que é ser princesa e o que aprenderiam.

"Ser princesa é ter educação, classe, ser gentil com as pessoas e não ficar gritando toda hora", disse Raphaella Barbosa, 9, que achou tudo da escola "muito bonito". "Parece um castelo de verdade". Para ela, princesa não veste nada muito ousado. "Também nunca vi princesa usando short ou camiseta", admite.

Bianca Abrahão, 11, diz que se considera "mais ou menos princesa". "Como muito fast food. Princesa come menos do que eu", avalia sobre seu lado menos princesa. O lado mais, diz ela, é "ser delicada e educada". "Mesmo que uma menina faça mal pra mim, eu não faço mal pra ela." Bianca disse que queria aprender na Escola de Princesas a ter "postura e a se defender melhor."

Durante um ano, a pesquisadora Michele Escoura estudou o impacto da febre de princesas entre crianças de diferentes extratos socioeconômicos. "As meninas associam ser princesa a ter coisas, como joias, vestidos e coroas, a ser bonita num padrão eurocêntrico e a se casar."

"A imagem da princesa está muito associada à da noiva. Não existe princesa solteira para elas, o que é limitador porque sabemos que existem outras formas de ser feliz."

Abravanel defende o resgate do matrimônio como função social da Escola de Princesas. "A gente quer valorizar o casar e a família, e não o morar junto. Não que morar junto seja uma coisa feia... Mas queremos valorizar a virgindade, o se guardar para o seu príncipe encantado."

DESPRINCESAMENTO

"Queremos formar meninas autoconfiantes e integrais. Seres completos e perfeitos que não precisam de um marido para ser feliz", prega a jornalista Mariana Desimone, da oficina de desprincesamento, que inclui noções de assédio e até aulas de defesa pessoal.

"Este tipo de educação não prepara a menina para o quadro de violência contra a mulher, para situações em que a menina precisa se impor. A postura da princesa é de submissão", completa Gandolfo, para quem a escolha de um modelo de mulher não se dá no vazio, mas a partir de estímulos. "A menina pode escolher ser princesa, mas se a gente só estimular a menina a ser isso, ela não vai querer ser mais nada. E, aí, não estou formando uma menina, estou deformando-a."

Yuri Bustamante, sociólogo criador das oficinas de desprincesamento no Chile, conta que o formato foi replicado no México e na Argentina. "Apesar da barreira linguística, nossas culturas são muito semelhantes no que tange à desigualdade de gênero, que causa tanto estrago no Chile como no Brasil, onde mulheres são assassinadas por sua condição e muitas vezes não sabem como se defender."

Para ele, o advento de uma escola de princesas deve ter sido considerado uma afronta para muitas brasileiras. "Na mesma semana tivemos mais de 30 brasileiras nos procurando de maneira desarticulada para replicar a experiência das oficinas de desprincesamento." Segundo Bustamente, a escola de princesas é a vida cotidiana das meninas. "Elas estão sempre sendo obrigadas a serem delicadas, sensíveis e submissas."


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