Folha de S. Paulo


Passageiros do Uber 'se comportam' para receber boas notas

Avener Prado/Folhapress
Designer e motorista de Uber, Bruno Fernandes, 25, mantém uma nota 4,9 no aplicativo
Designer e motorista de Uber, Bruno Fernandes, 25, mantém uma nota 4,9 no aplicativo

Balinha, ar-condicionado, água, rádio... Você que manda. "Tá tudo bem?", "Desculpe qualquer coisa" e "Se puder me dar cinco estrelas...". É o roteiro típico de uma viagem no Uber, em que a avaliação obrigatória ao final do trajeto define a continuidade do trabalho do motorista, que deve manter ao menos uma nota 4,6 para seguir transportando passageiros.

O sistema visa à segurança de usuários e motoristas e funciona de modo a banir do aplicativo quem é mal avaliado por dirigir mal, por exemplo, ou assediar mulheres. Agora, imagine que os motoristas também avaliem os passageiros ao término das viagens. Imaginou? Bom, é o que acontece. Verifique sua nota: no menu à esquerda do aplicativo, selecione "ajuda", "conta e pagamento", "configurações de conta e avaliações", "como as avaliações funcionam" e "enviar".

Um episódio da série "Black Mirror", da Netflix, impeliu usuários a procurarem suas notas no aplicativo. A série retrata, em histórias independentes, um futuro distópico aterrorizado pelo aspecto nocivo da tecnologia de hoje.

Assédio no Uber

No primeiro capítulo da nova temporada, no ar desde o fim do mês passado, todos são constantemente avaliados –como um Uber expandido para todas as interações do cotidiano. Seu vizinho o avalia depois de um encontro no elevador, o garçom que serve seu café também, assim como colegas de trabalho, amigos e até familiares. Os bem-avaliados têm privilégios, como descontos no aluguel; quem tem nota baixa vira um pária.

"No Uber morrendo de frio e com medo de pedir para aumentar a temperatura e o motorista me avaliar mal. Vivendo um episódio de 'Black Mirror'", twittou a editora Rayana Faria, 28, semana passada.

Fãs da série inverteram a lógica ao descobrir que também são avaliados. Embora um usuário seja banido se ferir os termos de uso –caso de quem tem uma nota consistentemente baixa–, um passageiro não precisa ter nota 4,6, como os condutores.

"Sempre dou cinco estrelas para os motoristas, mesmo quando não são tão legais. Descobri que a minha nota era 4,9 e fiquei curiosa porque tinha certeza de que seria 5, já que nunca tive problema em corridas. Agora fico pensando o que pode levar um motorista a me avaliar mal", diz Rayana.

Curiosa para ver se os motoristas a achavam "legal", a estudante Larissa da Silva, 20, exibiu a nota 5 nas redes sociais. "Me preocuparia se tivesse menos que 4,5." Por um período, o designer Bruno Fernandes, 25, motorista de Uber (nota 4,9), usava uma técnica para ser bem avaliado. No final da corrida, dava a nota ao passageiro na frente dele, dizendo: "Você foi passageiro cinco estrelas", com a esperança de que ele retribuísse a cordialidade.

"Notei que não influenciava muito e comecei a agir de forma mais natural. Como somos muito cobrados pela nota, às vezes viramos 'robozinhos' como em 'Black Mirror'", observa. Na série, todos exageram nas gentilezas, de forma obviamente forçada.

ESTRANHAMENTO

Para Fábio Malini, coordenador do Laboratório de Imagem e Cibercultura da Universidade Federal do Espírito Santo, esses sistemas de avaliação de "reputação" –que existem há ao menos dez anos e foram popularizados pelo eBay, empresa de comércio eletrônico– geram um estranhamento no caso do Uber, porque a avaliação não acontece mais num ambiente virtual. "Você sabe do trabalho suado do motorista, de 10, 12 horas", afirma Malini.

Ao mesmo tempo, o modelo cria uma "lógica de bajulação". "As pessoas ocultam suas verdades para criar um mundo de ilusão, em que todo mundo é 'cool', e o motorista tem receio de começar um bate-papo porque não sabe se sua visão de mundo pode chocar-se com a do passageiro."


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