Folha de S. Paulo


Manoel Ribeiro de Lima (1950-2016)

Mortes: Bem-te-vi: a grandeza cantável de Pernambuco

Quando Bem-te-vi pousava na feira, chapéu à cabeça, pandeiro na mão, a plateia antevia na arena montada o embate de titãs. Sabia que a pura cultura nordestina daria sua graça. E logo a cantoria fluía, na cadência da fala, sob a métrica do desafio. Com causos do cotidiano do sertão, mitos emprestados ao ideário cristão e disputas cravejadas de insultos, ironias e improvisos, o poeta com nome de pássaro provocava o oponente, arrancando do repente -ou, mais especificamente, da embolada- uma arte lírica sem par.

Era poeta, nada aquém. Quase de nada sabia, mas desconfiava de muita coisa, como já dizia o sertanejo de Guimarães Rosa. "Futebol de Finados", nunca gravado, brotou em folhas de papel hoje velho, cobertas com histórias de vida e morte. Outros poemas, gravou-os em discos. E teve na rádio programas onde cantou de improviso e de coro. Se vendia coisas e falava de gente, fazia-o pelo repente -pela embolada, versão solta, brincalhona, da arte primeira.

O porquê da leveza é desvario. Após perder pai e mãe pequenino, o menino de São Caetano (PE) vagou de mão em mão, na roça de macaxeira de sol a sol, sem ver sombra de futuro. Até cruzar, aos vinte e poucos anos, uma roda de samba de boca e soltar uns versos. "É um dom que vem de Deus", diz o filho, João. E ele tinha -tinha a "grandeza cantável".

Logo viajava com Zé Guri pelo Nordeste, do São João de Caruaru aos festivais de repentistas. Ia sem medo da sua arte, nem menor, nem maior. "Chegava com o pandeiro, batia, ganhava o troco e seguia", diz o filho -e ele teve dez: "todos sustentados pela cantoria". Quando João tinha 12, passou a escrever-lhe versos para decorar. Aos 16, o filho repentista voava solo.

Quando morreu dia 4, aos 66, de AVC, deixou a viúva, 17 netos e sete bisnetos. E deixou um legado: defendeu a finura da embolada, prima pobre do repente, da gente que não ri nem aplaude por nada.

coluna.obituario@grupofolha.com.br

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