Folha de S. Paulo


'Parceira', PM é tratada como vítima do Carandiru por desembargadores

"Esse julgamento teve, dentre as 111 vítimas, a de número 112. A 112ª vítima da chacina foi a Polícia Militar."

Essa apaixonada defesa da corporação foi feita pelo desembargador Edison Brandão, do Tribunal de Justiça de São Paulo, na sessão de terça (27) que anulou os julgamentos que condenaram 74 policiais pelo massacre do Carandiru –em 1992, quando 111 presidiários foram assassinados em uma ação da PM para conter um motim.

Ela dá o tom de como ocorreram as discussões na sala e, também, da relação de parceria existente entre magistrados paulistas e oficiais da PM.

O termo "parceira" está, aliás, em nota divulgada pelo Tribunal de Justiça de SP em fevereiro de 2013, quando o então presidente do TJ, Ivan Sartori, foi condecorado pela tropa de choque da PM com uma medalha por "relevantes serviços prestados [...] para a elevação do nome da Polícia Militar" de São Paulo. A maioria dos PMs acusados pelo massacre era da tropa de choque –e de suas divisões, como a Rota.

"Esta é a quinta medalha que recebo da PM e isso me traz um orgulho muito grande, em especial pelo respeito que tenho pelos senhores. Obrigado por essa honraria", disse Sartori, ao receber a medalha e posar para fotos.

Foi Sartori quem presidiu a sessão de terça que anulou a condenação dos 74 policiais. Ele ainda pediu a absolvição dos réus, sem necessidade de novo júri, e afirmou que "não houve massacre no Carandiru, mas sim legítima defesa [por parte dos PMs]".

O voto foi vencido –os outros dois desembargadores, Edison Brandão e Camilo Léllis, votaram pela anulação, não pela absolvição. Mas ainda há chances de prevalecer –dois outros desembargadores opinarão sobre a questão.

Para a procuradora Sandra Jardim, responsável pelo processo do Carandiru, a Constituição do país "será rasgada" se isso ocorrer, pois só cabe aos jurados decidir se uma pessoa é culpada ou não. Integrante do Ministério Público, ela diz ter a impressão de que não eram os 74 policiais que estavam sendo julgados, mas a Polícia Militar.

RELEVANTE SERVIÇO

No mesmo dia em que recebeu a medalha em fevereiro de 2013, Sartori agradeceu algo que a PM faz e que, para juízes ouvidos pela Folha, reforça a relação entre a cúpula da corporação e o TJ. "O relevante serviço prestado à nossa Corte, como as escoltas, a guarda e a segurança, são essenciais", disse o magistrado no evento.

A PM paulista oferece 841 agentes para a segurança de prédios do Judiciário estadual, incluindo a proteção pessoal do presidente do TJ, vice-presidente e do corregedor. Desse efetivo, 491 são cedidos sem nenhum custo para o Judiciário. Já os outros 350 PMs são contratados por meio de convênio –recebem um adicional de R$ 188,40 por dia trabalhado ao TJ.

Em toda a região de Franca (interior de SP), por exemplo, o efetivo da PM era de 753 policiais três anos atrás.

Massacre do Carandiru
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Da mesma forma que o Judiciário contrata policiais para fazer bicos, a PM também contrata magistrados para dar aulas na academia de oficiais do Barro Branco. Um desembargador do TJ deu aulas na academia por cerca de 30 anos a ponto de ganhar, em 2016, uma sala para "preservar sua trajetória".

"Falecido em 2014, Alvaro Lazzarini foi, além de juiz e desembargador, oficial da PM formado pela academia, instituição da qual posteriormente tornou-se professor, atuando por mais de 30 anos", diz nota do TJ.

A cordialidade dos oficiais se estende à família dos magistrados. No último dia 23, por exemplo, Guilherme Sartori, candidato a vereador em São Paulo pelo PHS e filho do desembargador, foi recebido no centro de operações da PM.

A corporação diz que o local está aberto à visitação de qualquer um. "Trata-se de um prédio público, com a possibilidade de visitas monitoradas de qualquer cidadão, mediante agendamento prévio." A PM não informou quantos magistrados dão aula no Barro Branco e o valor pago –disse que as respostas serão dadas depois, pois dependem de consulta a órgãos internos.

Procurado por meio da assessoria do TJ, Ivan Sartori não comentou. "Os desembargadores não podem conceder entrevistas sob pena de a parte contrária entrar com pedido de impedimento e eles não poderem mais atuar no processo", diz nota do tribunal.

Nesta quinta (29), Sartori se manifestou em rede social. "Você é uma infeliz que não sabe o que diz"; "incauta dos ativistas do pseudodireitos humanos", "indecente é vc", escreveu, em resposta a críticos.

Como foi o massacre do Carandiru

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Julgamento do Massacre do Carandiru

Ação foi desmembrada de acordo com os andares do pavilhão 9

1º andar
Mortos: 15
Condenados: 23 policiais
Absolvidos: 3, a pedido da promotoria
Pena: 156 anos de reclusão cada um
Julgamento: 6 dias

2º andar
Mortos: 73
Condenados: 25 PMs da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar)
Pena: 624 anos de reclusão cada um
Julgamento: 6 dias

3º andar
Mortos: 8
Condenados: 15 PMs do COE (Comando de Operações Especiais)
Pena: 48 anos de reclusão cada um

4º andar
Mortos: 15
Condenados: 10 PMs do Gate (Grupo de Ações Táticas Especiais)
Pena: 9 com pena de 96 anos cada um, e um com pena de 104 anos
Julgamento: 3 dias

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Cronologia

2.out.1992
111 presos são mortos na Casa de Detenção em São Paulo após invasão da PM

2001
Coronel Ubiratan, apontado como responsável pela ordem para invadir o Carandiru, é condenado a 632 anos de prisão, por 105 das 111 mortes

Fev.2006
Tribunal de Justiça de SP absolve o coronel, ao entender que a sentença do júri havia sido contraditória

10.set.2006
Ubiratan é encontrado morto; única acusada do crime, sua ex-namorada foi absolvida em 2012

21.abr.2013
Conclusão do julgamento do 1º andar

3.ago.2013
Conclusão do julgamento do 2º andar

19.mar.2014
Conclusão do julgamento do 4º andar

31.mar.2014
Conclusão do julgamento do 3º andar

10.dez.2014
Ex-PM da Rota que foi julgado separadamente é condenado a 624 anos de prisão; ele já estava preso pela morte de travestis. Seu caso foi separado porque, na época, a defesa pediu que ele fosse submetido a laudo de insanidade mental

27.set.2016
Após recurso da defesa, Tribunal de Justiça de SP anula todos os julgamentos


*Parte das mortes não resultou em condenações porque não havia provas de que haviam sido causadas por policiais
Fontes: Reportagem, Ministério Público e Fundação Getulio Vargas


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