Folha de S. Paulo


Crianças de áreas carentes no país veem violência como algo normal

Na creche comunitária onde Carla Rodrigues Peres, 37, trabalha, é comum ver crianças de três anos brincando de tiroteio. Os amigos de sua filha Lara, 16, acham normal que datas importantes sejam comemoradas com tiros para o alto.

Tal normalização da violência não acontece apenas na cidade onde mora a família Peres, em Nova Iguaçu, região metropolitana do Rio. Um estudo lançado nesta segunda (26) pelo centro de pesquisa Instituto Igarapé e a ONG humanitária Visão Mundial indica que essa é a tendência entre crianças que vivem em regiões de baixa renda.

A pesquisa ouviu 1.400 crianças e adolescentes de 8 a 17 anos de 12 cidades brasileiras com baixo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). 40% delas já tiveram que interromper aulas por causa de um tiroteio. 63% dizem que apanham em casa. Apesar disso, apenas 1% dizem se sentir muito inseguros.

Ana Carolina Fernandes-10.set.2002/Folhapress
Crianças do morro do Querosene, na região central do Rio de Janeiro, escrevem as iniciais
Crianças do morro do Querosene, na região central do Rio de Janeiro, escrevem as iniciais "TC" da facção criminosa Terceiro Comando com cartuchos de fuzil depois de intenso tiroteio, em 2002

Segundo o diretor de pesquisa do Instituto Igarapé, Robert Muggah, essa normalização acontece porque a violência faz parte do cotidiano dessas pessoas. Ela está no dia a dia, nos noticiários e nas redes sociais.

O Brasil é o 2º país no mundo com o maior número de homicídios contra adolescentes. Segundo dados da Unicef, a cada dia, 28 crianças e adolescentes morrem no país devido a situações de violência.

A importância de perceber que a violência não é normal, dizem os pesquisadores, é evitar que o ciclo se perpetue e que quem a comete fique impune. As consequências da exposição constante de crianças à violência são várias, dizem os pesquisadores: reprodução da violência, dificuldade de estudar, problemas de saúde ligados ao estresse.

"Há pesquisas que mostram que pessoas expostas a estresse constantemente têm seus cérebros transformados quimicamente. Essas mudanças geram uma espécie de vício em situações de estresse. E assim a violência se perpetua."

Também chama a atenção na pesquisa o fato de que uma minoria (40%) respondeu que sempre se sente protegido pela polícia. Para Muggah, isso se explica pelo fato de o Brasil ter uma polícia que ele considera agressiva.

O timing do lançamento da pesquisa, a uma semana das eleições municipais, não é arbitrário, diz o diretor nacional da Visal Mundial, João Diniz.

"Pesquisas internacionais indicam que investir na primeira infância é a melhor forma de reduzir a violência. Mas crianças não votam. Por isso é preciso pressionar para que a agenda política de um município tenha a criança como prioridade. Criança é um problema de todas as secretarias."


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