Folha de S. Paulo


Samarco omitiu informação de riscos na barragem até de seus engenheiros

Diretores responsáveis pelas barragens da Samarco omitiram de engenheiros contratados pela própria mineradora informações sobre os riscos das estruturas em Mariana (MG), palco da tragédia que deixou 19 mortos.

Esses profissionais prestaram serviços de consultoria e vistoria para a empresa, mas não receberam dados reais da cúpula da mineradora que poderiam levá-los a classificar as barragens como inseguras em seus relatórios.

Segundo as investigações, deixaram de receber informações sobre os problemas no reservatório tanto os integrantes do painel internacional de especialistas mantido pela mineradora quanto o responsável por vistoriar e declarar como estável a barragem de Fundão em 2015 –que se rompeu em novembro.

Desde 2009, a Samarco mantinha um grupo externo de engenheiros (ITRB) que avaliava a situação de Fundão e fazia recomendações para os diretores da mineradora.

Em relatório de novembro de 2014, os especialistas consideraram como boa a condição geral de operação das barragens da Samarco e escreveram que as "praias" (reservatórios de rejeitos arenosos) tinham "largura requerida no projeto". A Polícia Federal, porém, descobriu que a informação não condizia com o que era observado.

Fundão recebia rejeitos de areia e lama. A areia era lançada na parte da frente, para formar barreira que seguraria a lama depositada atrás.

Para que o reservatório se mantivesse seguro, era obrigatório, segundo o projeto, que a areia formasse uma "praia" com, no mínimo, 200 metros, a fim de manter a água distante do barramento. O descumprimento da largura mínima era considerado uma falha operacional grave.

Informações coletadas pela PF mostram que, no ano em que o relatório foi escrito pelos consultores, a praia na lateral esquerda de Fundão, onde a barragem ruiu, esteve em tamanho menor do que o exigido durante todo o ano.

A Folha apurou que engenheiros do ITRB disseram em depoimento que não receberam da Samarco gráficos com o acompanhamento da distância da praia e que, por isso, consideraram que a empresa cumpria o que o projeto determinava em Mariana.

As omissões também ocorreram em inspeções de segurança –por lei, as mineradoras são obrigadas a contratar uma auditoria externa para fazer declaração de estabilidade de barragens, que é entregue a órgãos de fiscalização.

Em 2015, ao solicitar à consultoria VogBR a declaração de Fundão, a mineradora não informou à empresa que trincas tinham sido vistas no ano anterior durante vistoria de um engenheiro em uma obra que recuou a parede da lateral esquerda de Fundão.

Segundo esse engenheiro, as trincas indicavam um "princípio de ruptura" na barragem, por liquefação (quando a estrutura, muito encharcada, passa para o estado líquido e desmorona). Ele fez recomendações à Samarco sobre como tratar o problema.

Fundão se rompeu em novembro de 2015, por liquefação, no ponto do recuo, segundo as investigações da PF e da própria mineradora.

Controlada por Vale e BHP Billiton, a Samarco disse à PF em janeiro ter considerado "dispensável" dar à VogBR os relatórios de inspeção de 2014 do engenheiro –que afirmou que "estranhava" a omissão da Samarco ao não entregar os papéis com seu diagnóstico de princípio de ruptura.

O responsável pela declaração de estabilidade no ano da tragédia afirmou à PF que não soube das trincas nem recebeu os documentos que seriam, segundo ele, "relevantes" para seu trabalho.

MINERADORA NEGA

Procurada, a Samarco nega ter omitido dados ao grupo de engenheiros (ITRB) que avaliava a situação de Fundão. Por meio de nota, diz que os profissionais foram informados sobre a extensão da "praia", além de "acompanhar e ter ciência em virtude das visitas 'in loco' realizadas pelos seus membros".

"Há informações nos autos de que a diminuição da extensão da praia por si só não resultaria no rompimento da barragem, mesmo porque o índice de segurança da estrutura continuava a ser monitorado pela empresa. O ITRB nunca sinalizou o risco de rompimento da barragem de Fundão", diz a Samarco.

Sobre o relatório de engenheiro terceirizado, Joaquim Pimenta de Ávila, que indicava "princípio de ruptura" na barragem, a mineradora diz que o documento era dispensável para a emissão da declaração de estabilidade, porque "a VogBR faria, como de fato fez, sua própria inspeção de campo, tendo conhecimento e acesso irrestrito a todo e qualquer dado necessário".

A empresa diz ainda que não foi Pimenta de Ávila quem identificou as trincas em Fundão, mas a própria equipe técnica da Samarco, que as "submeteu ao seu consultor contratado". Segundo a Samarco, o consultor avaliou as trincas e fez recomendações "sem qualquer advertência sobre a instabilidade da barragem".

Também procurado, Pimenta de Ávila preferiu não se manifestar, já que a investigação está sob segredo de Justiça. Disse apenas que o tema (documentos não entregues) faz parte do inquérito que tramita sobre a empresa.

Já a VogBR afirma que a empresa e seu engenheiro não tiveram acesso aos relatórios de inspeção.

"Tomamos conhecimento das trincas e do princípio de liquefação no recuo somente após a ruptura", informou a empresa, em nota.

"Hoje, em função do inquérito, sabemos que o Joaquim Pimenta [de Ávila] emitiu sete relatórios de inspeção no ano de 2014. Tendo em vista que o engenheiro responsável pela emissão do laudo anual não vivencia a operação do dia a dia da barragem (a vistoria para este fim é pontual), é fundamental que ele receba todas as informações dos 12 meses que antecedem a emissão do laudo".

A empresa diz ainda que não havia indícios de que informações não tinham sido repassadas pela Samarco.

O Caminho da Lama

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Os consultores da Samarco

Como funcionava o painel de especialistas da empresa

O que é ITRB?
É um painel independente de consultores que analisava as medidas tomadas pela mineradora em suas barragens e fazia recomendações. A sigla significa Independent Tailings Review Board (conselho independente de revisão de rejeitos, em tradução livre).

Quando foi criado?
Em 2009, por indicação do engenheiro canadense Andrew Robertson, considerado um dos maiores especialistas em barragens de rejeitos do mundo, ao perceber que a Samarco não tinha "equipe qualificada" para lidar com Fundão.

Como funcionava?
O painel se reunia todo ano (no início, chegou a fazer três reuniões anuais), realizava vistorias nas barragens, discutia os principais problemas nas estruturas e preparava um relatório final com recomendações.

Qual era o poder do ITRB?
O painel era apenas um órgão consultivo. Várias recomendações dos especialistas, como eliminar o recuo do eixo, onde houve a ruptura de Fundão, nunca foram seguidas.

O que foi omitido?
A Samarco não informou que a barreira de areia usada para conter a lama da barragem era menor que o indicado no projeto.

Quem integrava o painel?
O conselho já foi formado pelos engenheiros Andrew Robertson, Angela Küpper, Paulo Abrão, Rui Mori (1944-2015) e Waldyr Lopes de Oliveira Filho.


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