Folha de S. Paulo


Orgulhoso da profissão, catador morto com flecha era apaixonado pelas netas

No balcão de uma lanchonete numa esquina do Bom Retiro, no centro de São Paulo, o bolo escolhido para comemorar o aniversário do reciclador Aldemir Pontes foi colocado novamente à venda para outros clientes. Pontes, que faria 64 anos nesta quinta (15), havia pedido seu sabor predileto, de leite cremoso.

Na tarde de quarta (14), saiu do supermercado entre as ruas Três Rios e Correia de Melo, onde recolhia papelão para vender a uma empresa de reciclagem, e viu funcionários da loja em frente receberem um carregamento. "Sem que pedíssemos, pegou algumas caixas e entrou para nos ajudar a guardá-las", diz o dono da loja, Pérsio Destácio, 54. "Era amigo de todos."

Depois, tomou um café (puro) na lanchonete da esquina e desceu em direção ao depósito de reciclagem, um caminho de 850 m que fazia três vezes por dia com uma carroça de 140 kg nas costas, somados aos cerca de 160 kg de papelão que recolhia cada vez. Segundo Gerson Cardoso, 43, funcionário do depósito, esse serviço totalizava quase R$ 4.000 mensais. Isso porque ele trabalhava das 7h –saía de casa às 4h– até 21h.

Por volta das 15h45 daquele dia, Aldemir Pontes foi atingido por uma flechada no pescoço. O suspeito de tê-lo matado, Denis Young Kim, 33, foi preso nesta quinta. O enterro está previsto para esta sexta (16), em Guarulhos.

Pontes trabalhava no bairro havia 12 anos. Era querido na região. Comerciantes dizem que ele era "doce", "muito trabalhador" e ajudava a todos. Cira Moura, 53, dona de uma banca de revistas, conta que ele comprava itens do supermercado para ela quando ela não podia deixar o serviço. Numa mercearia judaica ao lado, um funcionário mostra a pia consertada por ele.

"Dava 'bom dia' para todo mundo, chegava radiante", diz uma funcionária do supermercado onde ele tomava café da manhã, almoçava e jantava todos os dias, a convite da empresa. "Era um brincalhão", afirma um carroceiro conhecido como Ceará.

Foi nesse Estado do Nordeste, na cidade de Santana do Cariri, onde Pontes e os quatro irmãos, dois homens e duas mulheres, nasceram e foram criados. Em 1979, ano de início de uma grande seca no Ceará, Pontes deixou o Estado.

Conheceu a mulher no trabalho –ela era funcionária de um prédio onde ele foi fazer um serviço como gesseiro. Criaram as duas filhas no Jabaquara (zona sul). O divórcio, há 17 anos, não acabou com a amizade entre os dois.

Pontes "não tinha vergonha nenhuma do que fazia, pelo contrário", diz uma das filhas, a atendente Diana Santana Pontes, 35. Para o comerciante Destácio, o carroceiro tinha orgulho de sua profissão –"sabia que contribuía para a reciclagem"– e ciúme de sua carroça.

Ornada com amuletos como um terço e uma ferradura, sua ferramenta de trabalho ficou sob cuidado de Alcindino Farias, 61, dono de um depósito de reciclagem. Ele pesou o que o amigo havia recolhido na tarde em que morreu –100 kg de papelão, ou R$ 30 a R$ 40.

NETAS

Há um ano, Pontes deixou um quartinho que alugava por R$ 500 num estacionamento ao lado do supermercado do Bom Retiro para morar em Guarulhos (Grande SP), perto de uma das filhas, Amanda Santana Pontes, 31, e suas grandes paixões: as netas, Aninha, 8, e Sophia, 2.

Os amigos do Bom Retiro conhecem bem as duas, cujas fotos eram exibidas por ele em qualquer oportunidade. Ele passava os domingos sempre com a família, conta Amanda, que, com as mãos no rosto, lamentava nesta quinta (15): "Como é que eu vou viver sem meu pai?"

No Dia dos Pais, mês passado, Diana deu para Pontes uma imagem de Nossa Senhora, de quem ele era devoto –foi várias vezes, inclusive no começo deste ano, a Aparecida (a 180 km de São Paulo).

Parara de fumar havia anos, não costumava beber (mas tomava suco de couve e pepino todos os dias) e gostava mesmo era de um "forrózinho", que "dançava só com os joelhos", brinca Diana. "Era muito amoroso. Dizia 'te amo' toda hora."


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