Folha de S. Paulo


Barragem da Samarco recebeu lama antes de início oficial de operação

A barragem de Fundão, epicentro da tragédia de Mariana (MG) em 2015, começou a receber lama da Samarco seis meses antes do início oficial de sua operação. Isso ocorreu em dezembro de 2008, quando a barragem ainda não estava pronta e faltavam alguns componentes essenciais para o uso.

A utilização antecipada do local foi feita porque a Samarco enfrentou problemas no reservatório vizinho, Germano, mas não era aconselhada pelos consultores da empresa. À época, Fundão apresentava deficiência crítica no sistema de drenagem.

A informação consta de um relatório de 2008 feito pelo engenheiro canadense Andrew Robertson, considerado um dos maiores especialistas em barragens de rejeitos do mundo e consultor da Samarco desde 1996. Os documentos integram inquérito da Polícia Federal sobre a tragédia.

Segundo as investigações da PF e da própria mineradora, falhas na drenagem são apontadas como um dos fatores que causaram a ruptura de Fundão em novembro do ano passado. No desastre, 19 pessoas morreram e uma onda de lama devastou vilarejos e deixou um rastro de destruição por todo o rio Doce até o litoral do Espírito Santo.

Para Robertson, que visitou o reservatório em dezembro de 2008, a barragem não estava "pronta para receber os rejeitos de areia" e as "descargas de rejeitos deveriam retornar a Germano" até que "elementos essenciais" de Fundão pudessem ser completados e o sistema de drenagem fosse "investigado e remediado".

O despejo de lama em Fundão começou antes mesmo de a licença de operação ser concedida pelo governo de Minas, em setembro de 2008. A Samarco, porém, possuía desde maio daquele ano uma autorização provisória para operar e podia utilizar a barragem.

Em seus relatórios, o consultor faz duras críticas à mineradora. Segundo ele, não havia coordenação entre a equipe de desenvolvimento e os engenheiros projetistas "para garantir que todos os sistemas necessários para a operação da barragem fossem projetados e construídos".

Rastro de lama

"Uma programação inadequada ou a execução inapropriada conforme a programação já resultou várias vezes em riscos excessivos de falha nas barragens da Samarco. O que é particularmente preocupante é que a programação da construção não melhorou nos 11 anos em que o autor vem realizando análises", escreveu Robertson.

Fundão recebia dois tipos de rejeitos: lama e areias. As lamas começaram a ser despejadas no local por volta de junho de 2008, e as areias, meses depois, em dezembro. Naquela época, segundo o consultor, eram inadequados tanto o relatório que detalhava como a barragem havia sido construída como os manuais de operação.

Robertson notou ainda que a taxa entre lama e areia despejadas não estava na proporção prevista no projeto, o que poderia causar problemas. E afirmou que a deficiência na drenagem do dique feito para receber areia ocorreu porque o local foi usado como depósito de sedimentos, sem o controle da água.

Meses depois da visita do consultor, Fundão apresentou uma grave erosão interna em abril de 2009, devido ao entupimento dos drenos, que tinham sido construídos de forma errada, o que forçou o esvaziamento emergencial do reservatório e a interrupção no lançamento de rejeitos.

OUTROS ANOS

Obtidos pela PF, documentos elaborados por Robertson de 2007 a 2011 dizem que até ao menos 2009 a Samarco sequer tinha um corpo técnico suficientemente qualificado para lidar com uma estrutura tão complexa como Fundão.

Na época, Robertson propôs à empresa que implantasse um painel externo de consultores técnicos chamado de ITRB (Independent Technical Review Board), que revia as ações e opinava sobre as decisões tomadas pela empresa.

No relatório de 2011, o auditor do levantamento diz que a Samarco descarregava uma grande quantidade de areia com lama em Fundão, uma "estrutura vulnerável", e recomendava que se evitasse a mistura de rejeitos.

OUTRO LADO

A mineradora Samarco, controlada pela Vale e pela anglo-australiana BHP Billiton, disse em nota que "não irá comentar questões técnicas".

A empresa informou apenas que contratou, com suas acionistas, uma investigação do escritório norte-americano Cleary Gottlieb Steen & Hamilton LLP sobre as causas do rompimento e que os resultados foram divulgados publicamente no mês passado –somente em inglês.

A investigação revelou que ruptura ocorreu em uma obra feita no topo da barragem, causa já apontada pela Polícia Federal. Também encontrou uma série de falhas na execução das obras do reservatório desde 2008.

A Secretaria de Meio Ambiente de Minas Gerais afirma que havia uma autorização provisória para que a barragem de Fundão operasse antes de receber a licença e, se "houvesse a constatação de problemas graves às condições de operabilidade da estrutura, a APO [autorização] não seria concedida".

Técnicos do governo de Minas vistoriaram a estrutura em 29 de agosto de 2008, quando o reservatório já recebia lama. A licença de operação foi concedida no mês seguinte. De acordo com o órgão, "as condições de operabilidade atestadas logo após o início da operação do empreendimento (agosto/2008) são diversas das verificadas no momento do desastre".

Em nota, ainda afirma que a vistoria seguiu a legislação e monitorou "quesitos relativos à correta implantação e gestão dos controles ambientais adequados a mitigar os impactos ambientais". "Como não foram detectadas falhas pelo corpo técnico em campo, a autorização foi concedida", diz a nota.

A reportagem procurou o consultor Andrew Robertson, mas não obteve resposta.

O Caminho da Lama


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