Folha de S. Paulo


Morador teme burocracia após 'excluir ditadura' de nome de rua de SP

Luisa Leite/Folhapress
Ruas de Memória Alcides Filha
Placa na rua Alcides Cintra Bueno Filho

Alcides Cintra Bueno Filho, delegado do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo), ordenou, durante a ditadura militar, o enterro clandestino de dezenas de presos políticos no cemitério de Perus. Buscava ocultar evidências das torturas e assassinatos que aconteciam no porão da delegacia, segundo a Comissão Nacional da Verdade.

Em sua homenagem, uma pequena rua residencial entre os bairros Vila Amélia e Cachoeirinha, na zona norte de São Paulo, foi batizada com seu nome.

Agora, o projeto da prefeitura chamado "Ruas de Memória", que alterou, neste ano, o nome do elevado Presidente Costa e Silva, mais conhecido como Minhocão, para elevado Presidente João Goulart, quer fazer o mesmo na rua Alcides Cintra Bueno e com 20 outras vias na capital.

Por enquanto, cinco vias foram alvos de projetos de lei na Câmara. Além do Minhocão, a antiga avenida General Golbery Couto e Silva, no Grajaú, zona sul de São Paulo, foi alterada para Giuseppe Benito Pegoraro. Os outros estão em tramitação.

Luisa Leite/Folhapress
Ruas de Memória Alcides Filha
Vista da rua Alcides Cintra Bueno Filho

No caso da rua Alcides, o nome será alterado para rua Zilda Arns. A médica sanitarista foi fundadora da Pastoral da Criança que lutou contra a desnutrição e pela redução da mortalidade infantil.

A rua Alcides possui 36 casas, grande parte delas residenciais. A maioria dos residentes morou ali durante toda a vida. E parte deles tem grande resistência à mudança.

A objeção não tem motivação política. Alguns temem que a troca traga implicações práticas negativas: correspondências perdidas e outras burocracias. Outros simplesmente não veem motivo para a alteração.

O projeto da prefeitura prevê idas à comunidade, para explicar os motivos da iniciativa e esclarecer os pontos burocráticos.

A adesão na rua Alcides, porém, foi baixa. A Secretaria de Direitos Humanos montou uma tenda na rua, que contava com a participação de coordenadores do Ruas de Memórias e lideranças políticas. Eles se disponibilizaram para conversas com os moradores sobre o projeto. Muitos deles não quiseram comparecer.

Como o CEP permanecerá o mesmo, não será necessário ir aos correios ou fazer alterações no boleto de IPTU. A única mudança eventual será na escritura, apenas para quem desejar vender o imóvel, mas a maioria dos residentes desconhece essa informação.

É o caso de Olinda da Penha, 69. Ela é aposentada e mora com a filha no final da rua Alcides. "Com a minha idade, não posso ficar indo atrás de burocracias por uma bobagem dessas, não faz sentido algum."

Outros moradores dizem não ver sentido na troca.

"Eu sei que ele participou da ditadura. Mas ele não existe mais. Os ossinhos já viraram pó. Para que ficar se apegando a coisas do passado?" disse uma senhora que preferiu não se identificar. Ela afirma que mora na rua há mais de 40 anos.

Luisa Leite/Folhapress
Ruas de Memória Alcides Filha
Regina de Souza e sua filha Manuela, na rua Alcides

AUTORIZAÇÃO

A lei municipal que regulamenta a alteração de nomes de logradouros (15.717) diz que a autorização da maioria dos residentes é necessária para efetuar a mudança.

Mas ela não especifica se seria a maioria do número total de residentes ou de residências.

Na rua Alcides, por exemplo, foram recolhidas 22 assinaturas para autorizar a alteração. O número seria o suficiente se o total de casas, 36, fosse considerado. Mas não seria o bastante se todos os moradores fossem levados em conta.

Para os logradouros sem residências, a autorização não é necessária. É o caso da Praça Milton Tavares de Souza, na Vila Maria, que será alterada para praça Paulo Sella Neto - Tin Tin.

O militar cujo nome batizou a praça ficou conhecido após dirigir a Operação Marajoara, na fase final da Guerrilha do Araguaia, na qual grupos de esquerda armados atuaram contra o regime militar.

Alguns dos militantes desaparecidos na operação não foram encontrados até hoje.

Regina de Souza, 46, mora na rua Rocha Cabral. Sua casa fica na esquina com a rua Alcides. Ela é professora da rede estadual e presidente da associação de moradores Amigos da Vila Amélia.

Vista como líder comunitária, foi chamada pela prefeitura para tentar esclarecer dúvidas dos moradores da rua Alcides sobre a alteração do logradouro.

"Alguns nem quiseram que eu entrasse. A resistência vem principalmente dos mais velhos, muitas vezes por falta de informação. Os mais jovens em geral não têm objeções", disse. "Eu considero muito importante. Eu vivi durante a ditadura, as pessoas sabem como foi difícil".

Uma apoiadora da mudança é a filha de Regina, Manuela, 6. A mãe conta que ela acabou de estudar Zilda Arns na escola. Perguntada pela reportagem sobre o motivo do entusiasmo, Manuela diz "porque ela ajudou as crianças".


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