Folha de S. Paulo


Em UTI há 11 anos, adolescente adota a pintura e até vende seus quadros

"Essas coisas levam um segundo para acontecer. A recuperação, muito mais", disse a funcionária do Conjunto Hospitalar do Mandaqui ao pedreiro Amauri Silva horas depois de ele chegar ao local com o filho atropelado.

Naquele dia, Mateus, 2, comia um churrasco na calçada quando viu a mãe do outro lado da avenida Engenheiro Caetano Álvares, na zona norte de SP. Desgarrou-se do pai e atravessou a pista no momento em que um táxi passava.

A data está marcada na sua Identificação do Leito, uma folha colada atrás da cama. "Data admissão: 5/11/2004".

Mateus teve uma fratura na coluna. Não se movimenta do pescoço para baixo e depende de um aparelho conectado à garganta para respirar. Nunca mais voltou para casa.

Na UTI Pediátrica do hospital estadual, fez suas principais amizades, aprendeu a ler e escrever e desenvolveu um talento que hoje é mais que hobby: a pintura.

TRAJETÓRIA

Sua rotina começa cedo. Não pelas regras hospitalares. "Gosto de aproveitar o dia", diz. Por volta das 7h, uma funcionária o acorda. Seu nome é Ângela, mas ele a chama de Pu -o som que ela, surda, faz para se comunicar.

Após despertá-lo, Pu o ajeita em seu leito, que vira cadeira. É uma das pessoas que acompanha desde o início a vida de Mateus no hospital.

Os pais estiveram sempre presentes. Desde o atropelamento, Amauri e Marina não deixaram São Paulo. Instalaram-se perto do hospital e vão ao local todos os dias com comidas que o filho gosta.

Gabi é outra presença importante. Uma das nove crianças da UTI, chegou ali meses antes de Mateus. Tem amiotrofia espinhal, doença degenerativa grave que afeta o sistema respiratório.

Os dois têm aulas todos os dias com uma professora e, além das lições, compartilham um código. Quando nota um problema no respirador de Mateus, Gabi faz um som com a língua para avisar os enfermeiros -ela não fala.

Mateus se comunica com desenvoltura, menos quando o respirador sai do lugar. Nessas situações, faz um ruído gutural similar ao de um gato.

Sem a amiga, um dia passou um aperto. Estava na AACD quando o respirador desconectou. Fez o ruído. "Olha, barulho de gato", disseram os funcionários, que não o conheciam. Só perceberam o problema após pedirem para ele imitar outros bichos. "Na hora, pensei: meu, preciso contar essa para o Marcão", lembra Mateus.

Marcão é Marcos Justino Soares, da enfermagem. É ele que leva o garoto para tomar banho de chuveiro e o traz de volta para a cama, dando a volta mais longa possível. "Mateus diz que é chefe da UTI e precisa supervisionar."

Os médicos também integram memórias do garoto marcantes ou do dia a dia.

Eduardo Mariani dos Santos compra o lanche mensal no McDonald's. João Higa acompanhou Mateus em seu único passeio fora do hospital. Foram ao Santana Parque Shopping ver "As Tartarugas Ninja" em 3D, com uma mini UTI. Todos os dias manda boa noite no WhatsApp.

O garoto não desgruda do aplicativo nem do computador, que manuseia com um instrumento na boca. Tem plano de internet contratado pelos pais. "Se dá problema, ele fica louco, liga para a Vivo até resolver", diz a mãe, trabalhadora doméstica.

'CASA DO MENINO'

O espaço de Mateus na UTI tem ares de um quarto. Há um armário com bonecos de super-heróis, TV e três pinturas de sua autoria na parede -dois leões e um beija-flor.

Os bichos, que ele nunca viu, pintou durante as aulas com o artista Paulo Ferrari.

Os dois se conheceram em 2014, quando Ferrari perdeu o emprego numa editora. Seu filho conhecia uma pessoa dos Doutores da Alegria e, por ela, soube de Mateus. O garoto havia acabado de participar de um leilão da ONG, vendendo retratos de cada um dos palhaços que conhece desde pequeno. Ganhou R$ 1.800 por 32 telas.

Desde então, em visitas voluntárias às quintas-feiras, Ferrari ensina a Mateus novas técnicas de pintura. O garoto escolhe uma imagem, passa seu traços para uma tela ou papel, só olhando, e depois pinta com a tinta.

Passou a receber encomendas de funcionários e conhecidos. Cada pintura sai por R$ 20. "O certo seria cobrar R$ 50, porque dá um trabalho danado. Mas o povo fala muito, então às vezes até dou de graça", brinca.

O dinheiro vai ajudar a pagar parte de sua festa de aniversário, neste domingo.

O próximo ele ainda não sabe onde vai comemorar. A Justiça analisa ação que pede ao Estado a instalação de um marcapasso respiratório, o que o ajudaria a ir para casa. Se for embora, deixará saudades no Mandaqui.

"Mateus tem senso de humor, não se deprime e, ao mesmo tempo que tem ciência de sua realidade, tem sonhos", diz o médico Higa.

Por ora, o principal sonho é ver uma editora publicar em livro a história sobre super-heróis que fez com o professor. O seguinte, confidenciou, será sobre a sua vida.


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