Folha de S. Paulo


Cine Marrocos abriga estrangeiros e tem 'condomínio' de R$ 200

Por volta das 13h, a peruana Susy Sandra, 45, não sabia o que fazer para chegar ao seu apartamento, no quinto andar do antigo Cine Marrocos. Apoiada num pesado carrinho de mercadorias, olhava impotente para o único elevador que funcionava no prédio, mas que acabou danificado na ação policial em busca de armas e drogas, na manhã desta sexta (5).

"Acho que vou esperar o meu filho, estou muito cansada", disse Susy, que vende roupas na Feirinha da Madrugada, no Brás (centro).

Há 22 anos no Brasil, a comerciante acaba de sofrer um duro revés. Teve de fechar o restaurante Tradiciones Peruanas, na avenida Rio Branco, também no centro da capital paulista. O local havia entrado na moda entre os descolados paulistanos e lotava aos fins de semana.

Sem dinheiro, teve de trocar seu apartamento pelo prédio invadido. "Levei um golpe de uma funcionária", diz.

Os moradores estimam que os 12 andares do edifício sobre o antigo Cine Marrocos estejam ocupados por cerca de 600 pessoas –das quais seis foram presas na operação desta sexta. Localizado ao lado do Theatro Municipal, já abrigou um luxuoso cinema.

O prédio pertence à prefeitura, mas foi invadido em 2013 pelo MSTS (Movimento Sem-Teto de São Paulo), que cobra R$ 200 mensais dos moradores. Quem não paga é expulso. A medida é controversa entre grupos de moradia –parte dos quais não tem cobrança fixa das famílias, sobrevivendo de doações e rateios específicos de despesas.

Operação na cracolândia contra tráfico de drogas

Se a cúpula do MSTS é acusada pela polícia de lucrar com a venda de drogas na cracolândia, entre os demais habitantes do Cine Marrocos são mais frequentes os relatos de dificuldades financeiras.

Muitos estão desempregados ou são camelôs. Boa parte é estrangeira –peruanos, haitianos, angolanos, bolivianos e senegaleses compartilham o prédio com brasileiros.

Uma das moradoras é a desempregada Ligia Anacleto, 57. Ela afirma que se mudou para o local após gastar todas as economias para tratar uma compressão medular, que a obriga a usar cadeira de rodas.

Sem poder sair de casa há dois anos, o sustento vem do marido, que vende pequenos quadros de metal pelas ruas.

Durante a operação, que durou cerca de duas horas e meia, policiais distribuíram panfletos dizendo que não se tratava de ação de despejo.

Ligia e alguns moradores reclamaram de truculência, com portas arrombadas, objetos quebrados e armas apontadas para "gente de bem".

Habitante do 11º andar, um jovem de 17 anos disse que policiais da Tropa de Choque chegaram a agredi-lo apesar de ele estar em uma cadeira de rodas –com a bacia e o braço fraturados após uma queda. "Sem falar nada, levei uma cotovelada na cara", disse.

O rapaz não trabalha nem estuda e divide o apartamento com outras dez pessoas, entre o pai, irmãos e filhos de sua madrasta, que teve a tela do celular quebrada quando filmava os policiais.

No andar de cima, um menino de cerca de dez anos contava a outras duas crianças que o irmão, de 15, levou um tapa de um policial.

Apesar das reclamações, parte dos moradores dizia que a polícia era bem-vinda. "Foi bom o que aconteceu aqui", afirmou Susy. "Não somos todos iguais aqui."

A Secretaria da Segurança Pública diz desconhecer os episódios de truculência e que não houve incidentes com moradores. As portas arrombadas, afirma, eram de apartamentos para os quais havia mandados de busca e cujos ocupantes se negaram a abrir.

ESCADAS

Agora, além da ameaça permanente de despejo, os moradores do Cine Marrocos temem ter que conviver com a falta de elevador –todos os quatro estavam parados.

Foi em cima de um dos elevadores que a Polícia Civil afirma ter encontrado armas longas, facas e drogas.

Com isso, as escadas ficaram lotadas de mães com carrinhos, ambulantes subindo e descendo suas mercadorias e crianças brincando. Um menino ganhou R$ 10 de uma moradora para levar um recado ao último andar.
A solução, segundo os moradores, será fazer um rateio para consertar o elevador.

A Secretaria da Segurança afirma que o elevador que teve a porta arrombada já não funcionava e servia para guardar armas e drogas. O elevador operante, diz, não foi danificado. A Folha esteve no local e verificou que os moradores não conseguiram mais usá-lo.

Editoria de arte/Folhapress
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REPÓRTERES

Ascensorista e moradora do antigo Cine Marrocos, Luciana Aparecida, 32, disse que a operação começou com dois policiais civis à paisana que, para entrar no edifício, inicialmente se identificaram como repórteres da Folha.

Ela relata que um deles ficou na entrada enquanto o outro entrou no elevador com ela. Quando a porta se fechou, apontou uma arma e revelou ser policial.

"Ele me ameaçou. Falou que, se eu não o levasse para o apartamento da Dalva [Lindalva Silva, vice-presidente do MSTS], 'você vai ser a primeira que eu vou pipocar'."

A dirigente estava entre os ao menos cinco moradores do prédio levados por agentes da Polícia Civil. Ao sair do prédio escoltada, alguns moradores se exaltaram e gritaram palavras de ordem contra os policiais, mas não houve confronto.

O Denarc, da Polícia Civil, afirma que os policiais se identificaram como sendo de "uma TV comunitária independente."

Durante a operação, a jornalista Daniella Laso, da rádio CBN, foi temporariamente detida e teve seu celular apreendido por dois policiais.


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