Folha de S. Paulo


Famílias enfrentam desamparo um mês após tragédia na Mogi-Bertioga

"Mãe, quero morrer". "Mãe, eu quero uma mão nova". Nos dias mais difíceis, esses são os pedidos de Laís e Erick às suas mães. Os estudantes, obrigados a ficar na cama por causa de seus ferimentos, sobreviveram ao acidente que matou 18 pessoas na rodovia Mogi-Bertioga, tragédia que completa um mês nesta sexta (8).

Além de perder amigos e companheiros, quem sobreviveu agora lida com as sequelas físicas em uma situação de desamparo. Nos casos mais graves, as famílias dos alunos feridos dependem de doações para pagar cuidados básicos e o tratamento médico.

Parte deles ainda não recebeu nenhuma indenização ou ressarcimento da empresa de ônibus ou da seguradora.

Havia 35 pessoas no veículo. Morreram 17 estudantes e o motorista. O veículo fazia a linha diária entre São Sebastião, onde vivia a maioria dos 18 mortos, e Mogi das Cruzes, local das universidades. A perícia apontou falha nos freios como causa do acidente.

Erick Pedralli, 21, ficou 22 dias internado, alguns em coma, por um edema cerebral. Seu pulmão foi perfurado, e a orelha precisou ser costurada. No joelho, levou nove pontos, que ainda não cicatrizaram.

Mas o que mais magoa Erick é a sua mão. Estudante de engenharia civil, o jovem desenhava projetos, tocava violão, guitarra e baixo. Após o acidente, a mão ficou irreconhecível: inchada, com pontos e cortes profundos. O indicador direito foi amputado.

Quando pede à mãe por uma mão nova, Edna, 41, segura o choro. "Corta o meu coração", diz. Erick se recupera pouco a pouco. Ainda está fraco para andar, mas já ensaia seus primeiros passos.

O jovem ainda não sabe quantos dos seus amigos morreram no acidente. Segundo a mãe, Erick visitou apenas a namorada, a estudante de Biologia Laís de Oliveira Costa, 21, que também estava no ônibus. Ela está acamada por fraturas na bacia e nas costelas e só pode se locomover em uma ambulância.

Enquanto Erick dorme a maior parte do dia, Laís tem dificuldade para conciliar o sono. Em seus pesadelos, a estudante revive o momento do ônibus desgovernado e acorda assustada, afirma a mãe, Lucimeire Edwiges, 42. "Está pesado, porque ela tem crises, sente muita dor, chora muito. Não sabemos quando ela vai poder levantar e andar. Ela fica pedindo: 'Mãe, eu quero morrer'."

Erick e Laís perderam amigos, trancaram a faculdade e interromperam o trabalho.

Laís era auxiliar administrativa, ganhava R$ 1.200 por mês. Já Erick era vendedor e recebia R$ 1.560. Os dois deram entrada no INSS e devem receber um auxílio mensal.

O acidente, entretanto, não prejudicou somente o trabalho dos estudantes. A mãe de Erick teve que fechar seu pequeno salão de cabeleireiro para cuidar do filho. Só nisso, menos R$ 2.000 por mês.

Na família de Laís, o pai é policial reformado e teve que interromper os bicos de segurança nos primeiros dias de recuperação da filha. A situação piorou com os gastos em remédios e itens de higiene.

Laís e Erick precisam de fraldas geriátricas, além de lenços de limpeza, hidratantes e pomadas especiais. "Cada pacote de fralda sai por R$ 20, R$ 30. E, às vezes, a gente usa uma por dia", diz a mãe de Erick. A de Laís concorda. "Tem pomada para hematoma que é mais de R$ 100."

TRAUMAS

A estudante Aline de Jesus dos Santos, 20, passa por situação similar. Ela teve traumatismo craniano. "Descobri que existem cinco tipos de dor de cabeça", afirma ela, que tem tido dificuldade para comprar remédios psiquiátricos. "Um custava mais de R$ 200. Comprei uma caixa e não sei como vai ser quando acabar", diz a jovem.

A família de Gabriela Leite, 18, também se viu afetada. Ela teve afundamento do crânio, ficou em coma por dois dias e passou por uma cirurgia no cérebro. Precisa tomar cinco remédios diferentes, alguns para evitar convulsões.

"A gente é pobre. Não queremos um processo para receber o dinheiro depois de anos, a gente precisa disso agora. O cartão já estourou, nem passa mais", afirma a mãe, Joana Leite, 44, que trabalha em uma creche e recebe um salário mínimo.

Ela afirma que já reuniu notas para enviar à seguradora, mas ainda não recebeu reembolso. "Muitos recibos nós nem pegamos. Quem consegue pensar nisso no meio do desespero?"

No meio do desespero, entretanto, começaram a chegar as doações. Já no hospital, as famílias receberam roupas, dinheiro, comida e material de higiene. Quando Gabriela foi na farmácia comprar seus remédios, um funcionário, que ela não conhecia, a impediu de pagar. "Hoje é por minha conta", disse.

"A associação de moradores do nosso bairro, Barra do Una, se organizou para receber doações e nos deu R$ 500, ajudou muito. Ainda há pessoas boas no mundo", conta a mãe, Joana. O mesmo ocorreu com as famílias de Erick e Laís.

Amigos divulgaram os números das contas dos dois estudantes e as doações anônimas começaram a pingar. Lucimeire recebeu tantas fraldas que elas já ocupam um quarto inteiro. "Se Deus quiser, a Laís não vai precisar de todas, e eu vou poder doar para outras pessoas o que sobrar", afirma.

Os pais sequer conseguem calcular o quanto receberam. "Algumas pessoas me deram dinheiro na mão e eu já fui usando", conta Lucimeire.

Na casa de Erick, um amigo chegou com o carro cheio de fraldas. Segundo Edna, colegas e parentes organizaram pelo menos quatro pontos de coleta de doações: um posto de gasolina, o trabalho do estudante, a universidade e a própria casa da família.

Um time de futebol do bairro, Boraceia, também iniciou uma arrecadação, que se espalhou."Me ajudaram de várias formas, trocaram meu gás, gente que eu nem conhecia colocou crédito no meu celular", lembra Edna.

Enquanto a reportagem entrevistava a família, um amigo de Erick fez a primeira visita após o acidente. Igor Amorim, 19, trouxe uma cesta de comida e vasos com flores. Ao vê-lo, Erick pediu ajuda para se erguer da cama. Os estudantes se sentaram lado a lado e se abraçaram. "Estava ansioso. Como eu queria te dar um abraço", disse o amigo, e os dois choraram em silêncio.

ASSISTÊNCIA

A União do Litoral, empresa responsável pelo ônibus acidentado, afirma que tem prestado auxílio às famílias por meio de sua seguradora. A empresa diz também que fornece suporte técnico e jurídico para que as famílias consigam ter acesso ao DPVAT (seguro obrigatório).

A União do Litoral afirma ainda ter orientado que todas as famílias informem os valores gastos para que sejam ressarcidas em dinheiro. Ela diz que muito parentes se negam a informar a situação de saúde das vítimas do acidente e a apresentar notas que comprovem as despesas.

A Prefeitura de São Sebastião, responsável pela contratação do fretamento do ônibus, disse que desde a tragédia tem prestado assistência às famílias. Afirmou ainda que, até agora, 22 famílias foram visitadas por agentes da administração local.

A administração disse também que montou um posto de atendimento às famílias no bairro de Boiçucanga que serve para amparo jurídico, psicológico e social.

A Defensoria Pública Estadual disse que não foi procurada pelas famílias, mas que a partir da próxima semana acompanhará a investigação da Polícia Civil e buscará familiares de vítimas oferecendo apoio jurídico.

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O ACIDENTE

Por volta das 23h30 de quarta (8), ônibus tombou na rodovia Mogi-Bertioga (SP)

1. O ônibus seguia pela Mogi-Bertioga no sentido litoral, em trecho onde só há uma pista (existem duas pistas no sentido Mogi)

2. A neblina havia acabado após uma região da serra conhecida como "tobogã", e a rodovia tinha boa visibilidade

3. Próximo a uma curva à direita, sem acostamento, ele ultrapassou um carro, chegando a encostar no veículo

4. Nessa hora, começou a balançar, indo de um lado para o outro, prestes a virar

5. Tombou, deslizou pela pista e bateu em uma rocha na margem da via, parando de lado em uma vala

Editoria de Arte/Folhapress

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