Folha de S. Paulo


SP teve 'neve de mentira' em manhã fria de 1918; caso virou folclore local

Antigos meteorologistas, professores da USP, escritores que se debruçaram sobre o Modernismo, avós ou bisavôs que viveram na Pauliceia dos anos 1910. A menção ao dia que nevou na avenida Paulista, em junho de 1918, vira e mexe aparece em conversas de família, sites especializados ou nas redes sociais.

Mas realidade do que ocorreu naquela distante madrugada, há quase um século pode ser bem menos "europeia" do que se imagina.

Segundo registros oficiais -e São Paulo já tinha um observatório astronômico naquela época, exatamente na Paulista- a cidade teve uma "neve de mentira".

Por estar muito frio naquele dia, pode ter ocorrido um fenômeno climatológico bem mais comum. A meteorologista do IAG/USP, Samantha Martins, explica em seu blog "Meteorópole" que não era neve naquele dia. E os registros oficiais comprovam.

O nevoeiro, ao chegar ao solo e encontrá-lo extremamente frio, sublimou: passou diretamente do estado gasoso para o sólido. Sim, geou naquela madrugada.

Para corroborar sua afirmação, a pesquisadora faz referência às páginas de uma antiga caderneta com registros oficiais das condições do tempo na cidade.

As anotações do dia 25 de junho de 1918 mostram que não havia nebulosidade. Sem nuvens, não tem como nevar.

IAG/USP
Arquivo - caderneta_neve Imagem das páginas da caderneta de campo dos meteorologistas do Observartório Astronômico de São Paulo. Detalhe para o registro de geada na cidade e da falta de nuvens no céu. Crédito IAG/USP ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Imagem das páginas da caderneta de campo dos meteorologistas do observatório astronômico de São Paulo. Detalhe para o registro de geada na cidade e da falta de nuvens no céu

FOLCLORE

As temperaturas, que chegaram a 3°C negativos, bem que poderiam ter ajudado a cair uma nevezinha. Mas, como mostra o documento, o que houve mesmo foi geada.

A pesquisadora credita o nascimento do folclore, que dura quase um século, ao desconhecimento. "A falta de referencial do que é neve".

Uma pessoa leiga acorda e vê o gramado coberto por uma forte geada. "Realmente pode pensar que trata-se de neve", diz ela.

A referência àquele junho gelado de 1918 aparece tanto em jornais, que alardeavam que faltava água porque ela havia congelado nos canos, quanto em documentos considerados históricos.

"O inverno de 1918 foi muito intenso, talvez o mais frio da história registrado na cidade", conta o escritor José Roberto Walker, que está prestes a lançar um livro baseado em um diário coletivo escrito pela turma de Oswald de Andrade (1890-1954).

As anotações foram feitas por amigos de Oswald que frequentavam a Garçonnière do escritor, na rua Libero Badaró, no centro da cidade.

As atividades do "covil da rua Libero", como Oswald se referia ao apartamento, ocorreram entre 1917 e 1918. Nas pesquisas de Walker, aparece exatamente o registro do dia 25 de junho de 1918.

Segundo ele, o Observatório da Paulista, que funcionou de 1916 a 1930, registrou mesmo a temperatura de 3,2 graus negativos.

Por isso, e por outro registro extraído do diário coletivo de Oswald que Walker decidiu: o livro vai se chamar "Neve na Manhã de São Paulo".

Mas que outro registro é esse? Um trecho do diário de Oswald revela que, naquele dia, ele e Cyclone -uma de suas amantes -, "provavelmente se amaram sobre o tapete macio, com uma intensidade nunca reprisada na sala de pé-direito alto, desprovida de lareira".


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