Folha de S. Paulo


Fronteiras simbólicas agravam fosso entre regiões, dizem professores

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O estigma das periferias como áreas de pobreza e violência reforça a segregação social e territorial típica das grandes cidades brasileiras. Ao apontar favelas como lugares de concentração de risco e carência, construímos um conjunto de representações negativas que vão se perpetuando e acentuando as diferenças entre centro e periferia. Essa é a opinião do professor de geografia da UFF (Universidade Federal Fluminense) Jaílson de Souza e Silva.

Silva é um dos criadores do portal Observatório de Favelas e participou do debate "Apropriação do espaço público e o direito à cidade", realizado nesta terça-feira como parte do seminário internacional Cidades e Territórios: Encontros e Fronteiras na Busca da Equidade, organizado pela Folha em parceria com a Fundação Tide Setúbal.

A discussão contou também com a participação de Pablo Maturana, consultor internacional e ex-diretor da área de relações locais e internacionais da agência de cooperação de Medellin, e de Christian Dunker, professor de psicologia da USP e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da universidade.

Para Silva, o costume de instituições públicas, veículos de comunicação e outros atores sociais de relacionar periferias e favelas a questões negativas aumenta a disparidade em relação a outras áreas da cidade e dificulta a interação entre seus moradores e aqueles do centro.

"O IBGE denomina favelas e periferias de aglomerados subnormais, a mídia e a sociedade as chamam de comunidade carente. Todo juízo é marcado pelo estigma. Como um morador da favela vai sentir orgulho de viver ali e se sentir membro da cidade?" questiona.

Dunker também mobilizou elementos simbólicos ao abordar o conceito de direito à cidade. Por meio de uma perspectiva psicanalista, ele defendeu a ideia e que a construção de condomínios fechados a partir dos anos 1970 alterou a forma de as pessoas interagirem.

Com os muros, segundo ele, "deixamos de ver, reconhecer o outro. Começamos a fantasiar o que é esse outro através do muro. Cada vez que passamos da cancela, dos guardas, toda vez que se olha o aparato de defesa, se cria ideia de que do lado de lá é perigoso".

E esse perigo estaria ligado à diversidade. Constrói-se, na opinião de Dunker, a impressão de que o mundo é muito perigoso porque é diverso, portanto as pessoas, voluntariamente, "se cercam, erguem muros e se separam dos diferentes".

Contudo, esse processo promoveria o sofrimento de duas formas, segundo o psicanalista. Uma vez que a vida planejada, segura e entre iguais está consolidada, a felicidade se impõe como uma obrigação. E todo sinal de insatisfação deve ser atribuído "a uma fonte impossível de ser localizada; o outro".

O segundo sintoma é o que ele chama de hipertrofia da lei. O excesso de regulamentos e normas dos condomínios resulta na falta de ocupação do espaço. Os únicos lugares ocupados seriam os playgrounds, pois, segundo Dunker, são os únicos espaços de encontro das diferenças –em função da presença de babás, crianças e adultos.

Para o professor, um grau de indeterminação é essencial do ponto de vista psíquico. "Mas onde se encontra esse princípio de indeterminação? Encontramos na cidade", regido pela lei, mas também pela possibilidade de troca com o desconhecido, afirma. E a lógica do condomínio, expressa também em outros espaços, como shopping centers, impede essa possibilidade.

A ideia de direito à cidade não está restrita à academia e a organizações da sociedade civil. A cidade de Medellín é considerada um exemplo de sucesso na América Latina na forma de gerir investimentos e serviços públicos de forma a reduzir segregações territoriais e sociais.

Um símbolo dos avanços promovidos pela cidade nos últimos anos é o "metrocable", uma espécie de teleférico que facilita o transporte de moradores de uma área popular para o centro da cidade.

Muitas das pessoas que hoje usam o utilizam diziam "vamos para Medellín", pois o trajeto até o centro demorava três horas. "Era impossível que se considerassem membros da cidade dessa forma", disse Pablo Maturana, consultor internacional e ex-diretor da área de relações locais e internacionais da agência de cooperação de Medellin.

O superintendente afirmou que a grande maioria dos investimentos públicos da prefeitura da cidade vão para a área norte, a mais carente do município. "Politicamente não é rentável, mas se trata de um exercício de longo prazo" para a redução de desigualdades e a integração entre diferentes regiões da cidade.

"Pode parecer estranho ver jardins infantis com custo de US$ 3 ou 4 milhões ao lado de casas de papelão, mas é assim que atuamos em Medellín", afirma.

Respondendo a perguntas formuladas pelo público, Maturana apontou a relação entre a prefeitura e as juntas comunais –órgãos de articulação da sociedade civil– como uma forma de a gestão formular e executar os projetos públicos de acordo com as necessidades das populações locais.

"Trabalhamos juntos. E quando a primeira retroescavadeira chega para realizar a obra, toda a comunidade já sabe o que e como vai acontecer", afirmou Pablo. Diferentemente do que acontece no Rio de Janeiro, de acordo com Silva.

"No Rio é exatamente o contrário. Mecanismos internacionais de financiamento exigem participação popular, mas, mesmo se a população é contrária ao projeto, o governo o executa", disse.

"Na Rocinha, por exemplo, a população já desenvolveu formas próprias de mobilidade adaptadas às suas necessidades, como o mototáxi. Mas os gestores o ignoram ao defender a construção do teleférico".


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