Folha de S. Paulo


CRISTIANO FRANÇA DE LIMA, 35

Perdi 7 parentes num piscar de olhos, diz vítima da chuva em SP

RESUMO Em sua primeira entrevista, o padeiro Cristiano França Lima, 35, fala sobre a perda de sete familiares na forte chuva do dia 10: três filhos, mulher, sobrinha, pai e mãe. Todos estavam em uma casa em Mairiporã (SP). Naquele dia, 25 pessoas morreram no Estado.

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A gente iria se mudar naquela quinta-feira mesmo. Estava tudo pronto. Mas, de manhã, estava chovendo muito forte e adiamos a mudança para outro dia. Não tinha como saber o que ia acontecer.

A gente estava vivendo no Parque Náutico [bairro de Mairiporã] enquanto a outra casa não ficava pronta. Minha família tinha uma padaria no Guarujá [litoral de SP], mas, no ano passado, ela foi fechada. Em dezembro, viemos para Mairiporã para recomeçar.

Como era provisório, eram dez pessoas em dois cômodos. Eu, meus quatro filhos, minha mulher, meus pais, minha irmã e a filha dela. Todo mundo dormia no chão.

À noite, voltei do trabalho. Ainda chovia muito. Minha mulher, Paloma, me falou: 'Estou com medo de esse morro cair'. Não levei a sério, achei realmente que não ia acontecer nada. A casa ficava em um ponto mais alto no barranco. Havia mais duas casas, eu achava seguro.

Eram umas 21h40, e a gente começou a se preparar para dormir. Minha filha magrela, a Lara Bianca, ainda me disse: 'Pai, boa noite, eu te amo'. Peguei meu filho bebê, o Isaac. Ele dormiu no meu peito e o coloquei no colchão.

Minha mulher levantou e foi esquentar a mamadeira. Todos os outros estavam deitados nos colchões. Do nada, a Paloma voltou, gritando: 'Corre que tá tudo caindo'. Só deu tempo de eu dar um pulo do colchão. Ouvi um estalo, achei que fosse barulho do vento. Aí tudo desabou. Imagina que você está no meio de uma onda de lama gigante, em uma avalanche. Fiquei rodando em um túnel e acabei desmaiando.

Acordei soterrado até a cintura. Minha outra filha, a Nathalia [16 anos], estava abraçada em mim. Não sei como ela foi parar do meu lado, não sei como ainda estamos aqui, vivos. Consegui sair da lama e tirei a Nathalia. Minha irmã, Cristiane, também sobreviveu e ficou bastante machucada.

Sete parentes meus morreram. Não sobrou nada. [No deslizamento, morreram outras três pessoas de outra família. Estavam em outra casa no mesmo terreno].

ALICERCES, COLUNAS

Alguns vizinhos vieram ajudar quando pedi socorro. Minha mãe e meu pai estavam vivos, embaixo da terra. Ouvi a voz do meu pai, Severino: 'Não quero morrer aqui, me ajuda, meu filho'. Nós conseguimos chegar até ele, tinha uma parede prendendo ele. Tiramos terra até a cintura.

À meia-noite, os bombeiros chegaram. Eles falaram que todo mundo precisava sair dali. Então, o morro desabou de novo e meus pais morreram. Achei negligência, pois eles negaram socorro. Dava, sim, para salvar meu pai, a gente estava quase tirando ele. [Os bombeiros afirmam que deixaram o local porque havia risco de um novo desabamento, e isso poderia causar outras mortes.]

Aconteceu muita coisa errada depois. Na funerária, deixaram o corpo da minha filha Lara numa maca por quase 12 horas. Quando cheguei, ela estava cheia de moscas. Ainda tiveram a capacidade de deixar eu ver minha filha desse jeito.

Minha mãe foi enterrada sem um braço e sem um pé. Só depois me avisaram. Disseram que tinham achado os membros, depois negaram.

Quando a pessoa perde um familiar, sofre muito. Perdi sete num piscar de olhos. Tem gente que chega e me fala: 'Cris, vai lá e continua, não desiste'. Falar assim é fácil, né? Eu sou um ser humano.

Quando como alguma coisa, penso neles. Não consigo dormir, porque penso neles. Chego em casa e não tem nenhum deles. Como vou continuar? Viver para quê, que graça tem a vida? Quando você perde seus alicerces, suas colunas, faz o quê?

Pensei várias vezes em pegar meu carro, descer uma ladeira e só parar em um poste. A intenção era essa. Mas depois decidi tentar [viver], não quero mais desistir. Ainda tenho uma filha e minha irmã, que precisam de mim. Deus vai estar comigo.

Como acontecem os deslizamentos


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