Folha de S. Paulo


RAPHAEL CAGGIANO, 32

Médico narra dilema para resgatar vítimas da chuva na Grande SP

RESUMO O médico Raphael Gargiulo Caggiano, 32, socorrista do Grau (Grupo de Resgate e Atenção às Urgências e Emergências), foi chamado para uma ocorrência na noite do dia 10. Um deslizamento de terra em Mairiporã havia matado oito pessoas. No total, 25 pessoas morreram no Estado em decorrência da intensa chuva –23 na Grande SP e 2 no interior. A partir do chamado, o médico e sua equipe enfrentariam difíceis dilemas pela frente.

*

A gente estava de plantão em um quartel dos Bombeiros na Casa Verde e, por volta das 20h, recebemos um chamado. Por causa da chuva, um barranco havia caído no Parque Náutico, em Mairiporã. Foi só o primeiro chamado daquele dia.

No carro estávamos eu, três bombeiros e um enfermeiro. Para chegar até o topo do morro, precisamos descer da Pajero várias vezes. Ainda chovia muito, parecia uma mangueira aberta. Retiramos pedras e árvores do caminho.

Assim que chegamos, nos disseram que oito pessoas já estavam mortas. Mas havia um casal de idosos que ainda estava vivo embaixo da terra. Eles se chamavam Severino e Severina. Estavam conscientes, conversaram com a gente. Faltava pouco para retirá-los da terra.

Então um dos bombeiros soou um apito. Foi um sinal de que iria ocorrer um novo deslizamento no barranco. Nós decidimos sair e tivemos que deixar o casal lá.

Segundos depois, o barranco desabou de novo. Os idosos morreram, infelizmente.

Nos cursos de resgate, aprendemos que a primeira preocupação é não ser a próxima vítima. Não é uma decisão fácil, mas você precisa evitar uma tragédia maior.

Naquela hora, os parentes acharam que tínhamos abandonado as pessoas. Mas depois viram que, se a gente tivesse continuado lá, mais gente teria morrido.

OUTRA CHAMADA

Por volta da meia-noite, recebemos outra chamada de deslizamento. Uma criança estava presa embaixo de uma casa em Francisco Morato. Era um percurso pequeno, mas demoramos mais de uma hora para chegar. A cidade estava embaixo d'água, era um cenário catastrófico.

Quando estávamos quase no local, havia uma rua bastante alagada. Descemos do carro e fomos andando, com a água no peito. Chegamos somente por volta da 1h30.

Encontramos um ambiente de guerra. A casa estava embaixo da terra. E existia um risco de perder uma criança e de todo mundo da operação ser soterrado.

Quando a ocorrência envolve criança, a equipe fica mais sensibilizada. A única coisa que passou na nossa cabeça foi salvar a Ana Clara [do Nascimento, 5]. Nós decidimos continuar, mesmo com risco de tudo desabar de novo.

Começamos a cavar com as mãos e encontramos a Ana viva. O pezinho dela estava preso em duas colunas. Ela estava consciente. Dizia que queria ir para a escola e que a gente estava sujando o cabelo dela de terra.

O trajeto do médico

Chegou reforço e nós tentamos por várias horas cortar as colunas, mas não estava funcionando. A gente não podia usar equipamentos maiores porque havia o risco de desabar de novo. Colocamos um cobertor em cima dela e injetamos soro aquecido.

Mesmo assim, já no início da manhã, a Ana começou a entrar em processo de hipotermia. Ficou confusa, sonolenta, com a pressão baixa.

Aí tive que tomar uma das decisões mais difíceis da minha vida. Ou a gente tirava o pezinho dela ou ela iria morrer. Tomamos a decisão de amputar a perninha, um palmo abaixo do joelho.

FRUSTRAÇÃO

Não foi fácil, mas era a única opção. Pensamos na vida dela. Ainda assim, tentamos por mais uma hora cortar as colunas. Não deu certo.

Os pais não moram com ela, e não estavam no momento. Decidimos fazer o procedimento sem consultá-los. Só falamos depois. Avisei a base em São Paulo, e eles enviaram mais uma médica, num helicóptero. Por volta das 9h, falei: "Vamos amputar agora".

Fizemos uma sedação profunda na Ana. Ela não sentiu nada. Usamos uma serra chamada Gigli, que estava na viatura e só tinha sido usada uma vez, há anos. A amputação foi feita embaixo de chuva e do barro. Durou um ou dois minutos, mais ou menos.

A Ana foi levada de helicóptero para o Hospital das Clínicas. Ainda está lá, se recuperando. A dificuldade foi tão grande que a perna dela continua no local. Ninguém conseguiu tirar, porque há um grande risco de desabar.

Naquele dia, meu sentimento e o da equipe foi de frustração. Nós encaramos como uma missão fracassada. Mas depois, quando vimos que ela está bem, pensamos que foi gratificante. Nossa missão, como socorristas, é salvar vidas a qualquer custo. Nós fizemos isso.

Na quarta (16), fomos ao hospital visitar a Ana. Ela se lembrou de nós, mas não gostou. Olhou pra mim e disse: "Você era meu amigo, mas cortou a minha perna". Ela tem razão, mas acho que fizemos a coisa certa.


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