Folha de S. Paulo


Desabrigados da chuva saem de morro para palco de teatro na Grande SP

Depois que a terra desabou, Maximiana Arcanja, 28, teve que subir em um palco pela primeira vez na vida. Não virou protagonista, isso ela nunca teve chance de ser. Da tragédia que se iniciou na noite de quinta-feira (10), ela espera apenas que tenha um desfecho menos triste.

Maximiana é uma das coadjuvantes da chuva que deixou 25 mortos última semana em São Paulo. Tornou-se desabrigada quando sua casa foi destroçada pelo desabamento do morro onde vivia, em Franco da Rocha (Grande SP).

Desde então, ela dorme no palco de um centro cultural da prefeitura que acolhe desabrigados. A cidade de 146 mil habitantes foi uma das mais castigadas pela chuva.

Maximiana não havia conseguido vaga na creche municipal para seus dois filhos. Para cuidar das crianças, largou seu emprego como diarista. Sem dinheiro para pagar um aluguel em lugar melhor, foi morar em área de risco –essa que desabou na quinta.

"Minha casa era tão ruim que eu tinha de cozinhar no banheiro. Tudo desabou e não tenho mais nada", diz. Ela ainda tem uma chance: foi sorteada no Minha Casa, Minha Vida e agora sonha que, em alguns meses, possa morar em um apartamento.

Em cima do palco, ela divide esse cenário (agora repleto de colchões e roupas) com outros personagens da chuva. Benedito Guerra, 30, é um deles. No escuro, ele faz carinho na filha Yumi, de um mês, que dorme num carrinho. "A cortina do teatro não deixa a luz entrar, e é mais silencioso", explica Guerra, que é operador de roçadeira.

"Tem gente que critica quem vive em área de risco. Ouvi gente me perguntar 'Por que você constrói no morro'? Se eu tivesse dinheiro, iria morar no Morumbi", diz, com a certeza de que isso nunca acontecerá. "Se eu tivesse material, subiria o morro e construía tudo de novo."

Como acontecem os deslizamentos

PRIVACIDADE

Em Franco da Rocha, 210 casas em áreas de risco foram interditadas. Em Mairiporã, outra cidade atingida, uma centena está fechada. A maioria das pessoas foi para casa de familiares. No palco dos desabrigados vivem 11 famílias, com ajuda da prefeitura e de doações que chegam de outros municípios.

Quem vive nele, perde a privacidade. "A gente dorme junto, mas é um ambiente respeitoso. O ruim é que tenho de esperar meia hora para tomar um banho", relata a diarista Maria Lúcia Marçal, 42. Ela só está ali por um golpe da sorte: "Minha casa estralou e eu vi que algo estava errado", conta. A diarista então jogou os filhos pela janela e saiu, segundos antes de a terra "engolir" sua casa.

Maria Lúcia entrou na fila estadual da habitação em 1998 e até quinta passada ainda estava em área de risco.

POR QUÊ?

"Por que eu vivia em área de risco? Porque ou eu pago aluguel ou sustento meus filhos. Ou pago aluguel ou compro remédio para minha filha", responde o eletricista Carlos Silva Dias, 30. A filha dele, Karla, 4, tem uma doença nos rins e precisa de medicamentos especiais –a família gasta R$ 300 mensalmente com isso.

Carlos não conseguiu tratamento para a menina. Precisava ir até um hospital público em Diadema, no ABC. "Um dia a levei ao médico. Meu patrão não entendeu e me mandou embora", diz ele, desempregado há cinco meses.

Para Karla, também não havia vaga nas creches. "Nós fizemos inscrição quando ela tinha cinco meses. Até hoje não saiu", diz Fabrícia Fernandes, 28, mãe da garota. Ela desistiu de trabalhar. Na quinta, a família também virou coadjuvante da tragédia.

A vida agora é no palco.


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