Folha de S. Paulo


'Prima da dengue', chikungunya deixa rastro de doentes crônicos

Faz nove meses que a gerente de banco Dannylle Campelo, 32, tem dificuldades para pegar no colo a sua filha de um ano ou dar banho no primogênito, de quatro. Ela também não consegue calçar as sapatilhas ou secar o cabelo sozinha.

A técnica de enfermagem Marlúcia de Sandes, 37, precisa de ajuda para se vestir. Erguer os braços virou uma missão quase impossível. Recentemente, sofreu três cortes na mão por falta de força e de sensibilidade.

A ambulante Maria Lúcia Santos Silva, 41, perdeu clientes porque, em razão da dor e da perda de força nas mãos, não consegue mais cortar em pedaços os frangos que vende. "As pessoas reclamam."

Um ano e seis meses após a primeira epidemia da febre chikungunya no país, muitos pacientes de Feira de Santana (BA) ainda convivem com fortes dores, dificuldade de movimento e deformações nas articulações dos pés, mãos, tornozelos e joelhos.

Transmitida pelo mosquito Aedes aegypti, assim como a dengue e a zika, a chikungunya tem deixado um rastro de doentes crônicos.

"A doença tem sido colocada em terceiro plano, mas é uma encrenca muito grande. Muitas pessoas estão há meses indo e vindo de consultórios médicos e ambulatórios", diz o infectologista David Uip, secretário estadual da Saúde de São Paulo.

ALCANCE

Um terço dos infectados de Feira de Santana já são doentes crônicos. Sofrem há mais de seis meses de problemas como artrite (inflamação das articulações) e artrose (desgaste da cartilagem que recobre as extremidades dos ossos e danifica as articulações). Quadros depressivos também são frequentes.

As mulheres responderam por 55% dos 4.107 casos de chikungunya registrados no município no ano passado. A faixa etária entre 20 e 49 anos, a mais produtiva, foi a mais afetada (56%).

"São pessoas jovens, que estão afastadas do trabalho há meses, algumas há mais de um ano. O impacto socioeconômico é enorme", diz a médica Melissa Barreto Falcão, da Vigilância Epidemiológica de Feira de Santana.
No Brasil, são 13 Estados e o Distrito Federal com casos autóctones (contraídos no local) de chikungunya. Foram quase 27 mil notificações em 2015, sendo 24,6 mil no Nordeste —a Bahia é a campeã, com 18.154 registros, segundo o Ministério da Saúde. O Estado de SP teve 133 casos importados no ano passado. Em 2016, dois casos autóctones foram registrados na capital.

"Chikungunya não é uma doença tão benigna como as pessoas pensam. A cada epidemia, ela parece se tornar mais severa", diz o reumatologista Morton Scheinberg, professor livre-docente de imunologia da USP.

Segundo Melissa, além da artrite e da artrose, tem sido comum esses pacientes desenvolverem fibromialgia, síndrome do túnel do carpo e perda de sensibilidade.

CASOS AUTÓCTONES (de transmissão local) - Número de registros em 122 municípios?no ano passado

"De uma hora para outra, ficam dependentes para as mínimas coisas. Tem paciente se queimando porque perde a firmeza nas mãos, outra que não consegue mais pentear o cabelo, outro que precisa de ajuda para abotoar uma camisa. É muito triste."

SOFRIMENTO

A bancária Dannylle convive há oito meses com sérias limitações. "Tem dia que não consigo sair da cama. A dor é tão intensa que os pés parecem que estão quebrados."

Ela conta que nos primeiros meses após a infecção, em junho de 2015, relutou em se licenciar do trabalho. "Ia trabalhar chorando de dor."

Em novembro, porém, se afastou. "A gente se sente impotente. Sempre tive uma vida ativa. É difícil ter que viver com tantas limitações."

Exames de imagem feitos cinco meses após a infecção revelaram que a jovem desenvolveu artrose nos dois pés, na coluna e no ombro.

Hoje ela usa vários medicamentos, entre eles analgésicos e corticoides, e faz fisioterapia e acupuntura. Mas ainda sente dor, inchaço nas articulações e perda de sensibilidade. Também desenvolveu depressão. "Minha vida virou de ponta-cabeça."

Febre chikungunya

Maria Lúcia vai ao ambulatório público três vezes por semana tomar injeções de anti-inflamatórios. "Chego a chorar de tanta dor", diz ela.

Segundo a médica Melissa, não há como precisar quanto tempo esses sintomas vão durar. "Na literatura há relatos de casos acompanhados há seis anos, com a permanência do quadro."

DOENÇA

Embora o risco de morte por chikungunya seja menor em comparação com a dengue, a possibilidade de a doença se tornar crônica em uma parcela dos pacientes é motivo de grande preocupação, segundo especialistas.

Na fase aguda, esse vírus causa febre, dor nas articulações e manchas na pele. Os sintomas tendem a desaparecer em duas a três semanas, mas, em uma parte dos pacientes, eles vão perdurar durante meses ou anos.

"O impacto disso nos sistemas de saúde será enorme", diz o infectologista David Uip, secretário estadual da Saúde de São Paulo.

Doenças transmitidas pelo Aedes aegypti

O mecanismo de aparecimento e persistência desses sintomas nos pacientes de chikungunya ainda não está bem identificado.

Segundo o reumatologista Morton Scheinberg, alguns pacientes costumam desenvolver uma forma crônica de artrite semelhante àquelas autoimunes, como é o caso da artrite reumatoide.

Scheinberg integra um grupo de pesquisadores que está estudando doentes crônicos de chikungunya em Feira de Santana (BA). Eles vão comparar as formas persistentes da doença observadas no município baiano com as descritas na Ásia.

"Queremos estudar as alterações imunológicas que ocorreram nas duas epidemias com as que são observadas na artrite reumatoide. Muitas vezes, clinicamente, elas são indistinguíveis."

Para ele, esses estudos poderão trazer novas informações sobre a melhor forma tratar os doentes crônicos.

Segundo Scheinberg, ainda não se sabe se a artrite crônica ocorre pela presença do vírus da chikungunya na articulação ou pela indução de uma resposta do sistema imune à presença do vírus.

Estudos para esclarecer essas dúvidas foram iniciados pela AACD (Associação de Assistência à Criança Deficiente), em parceria com pesquisadores internacionais.

Para ele, é fundamental o diagnóstico precoce da artrite e o tratamento correto, inclusive com medicações biológicas, para evitar as deformidades nas articulações.


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