Folha de S. Paulo


Juíza atua contra prisões ilegais e pode ser punida pelo TJ-SP

A desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo Kenarik Boujikian, cofundadora da Associação Juízes para a Democracia, corre o risco de ser punida por ter dado alvará de soltura a dez presos. Segundo ela, eles ficaram mais tempo em regime de prisão provisória do que aquele previsto em suas condenações em primeira instância -o que é ilegal e passível de indenização pelo Estado.

Uma comissão especial do TJ vai mobilizar 25 desembargadores na tarde desta quarta (27) para decidir se Boujikian, conhecida por sua atuação na defesa dos direitos humanos, violou o regimento interno do tribunal e se deve sofrer uma punição.

O processo disciplinar contra a juíza teve origem na representação feita por um colega, o desembargador Amaro José Thomé Filho. Ele alegou que a decisão de Boujikian deveria ocorrer de forma colegiada, em grupo. Mas o próprio regimento interno do TJ, em seu artigo 232, assegura ao relator do processo decisões urgentes do tipo, que são posteriormente confirmadas ou não pelo colegiado.

CONTRAMÃO

A ameaça de retaliação à juíza vai na contramão de medidas tomadas nos últimos anos para reduzir a superpopulação carcerária brasileira e o uso da prisão provisória, que tem como finalidade evitar condutas do réu que atrapalhem a investigação e a efetividade do processo.

O país tem hoje cerca de 240 mil presos provisórios ou 40% do total de presos. O custo médio mensal de um preso é de R$ 1.400.

Em 2011, a Lei de Medidas Cautelares criou alternativas à prisão provisória, como o uso de tornozeleira eletrônica ou o comparecimento periódico diante do juiz. Em 2015, o país passou a adotar audiências de custódia, em que presos em flagrante são apresentados em até 24 horas a um juiz, que decide se ele deve seguir preso ou obter liberdade provisória.

Antes de 2011, apenas cerca de 12% dos presos em flagrante recebiam liberdade para responder ao processo. Hoje, este percentual é, em média, de 45%.

"Há uma cultura de que todos os problemas são solucionados com prisão, algo caro, em que o sujeito sai pior do que entra e onde é facilmente recrutado por facções criminosas", avalia Bruno Langeani, coordenador de sistema de Justiça da ONG Sou da Paz. "O Judiciário, que deveria se preocupar em reduzir prisões provisórias excessivas, se insurge contra uma juíza que tomou uma decisão neste sentido."

Segundo um dos advogados da magistrada Igor Sant'Anna Tamasauskas, "o mais grave é a mensagem que este caso passa para a magistratura e os novos juízes: se prender a qualquer custo, não será incomodado, se olhar para os direitos e garantias, sobretudo dos menos privilegiados, pode colocar a carreira em risco".

INDEPENDÊNCIA

"Acho que o que fiz foi correto", declara Boujikian. "Trata-se de uma situação que considero juridicamente muito simples: se a pena foi fixada e não há notícia de soltura transcorrido este período, dei alvará cautelar, para não haver risco de a pessoa ficar presa por mais tempo."

A desembargadora, julgada por dez casos em que adotou esta medida, diz ter tomado a mesma decisão em cerca de 50 casos em que o tempo de prisão provisória excedia a sentença em primeira instância. Na maior parte deles, o recurso era da defesa, o que significa que a pena não poderia ser aumentada.

"Tenho esperança de que o TJ reafirme a independência judicial, que é um compromisso com os direitos fundamentais e com o Estado Democrático de Direito", diz.

Entidades como o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), a Pastoral Carcerária, o Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH) e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) publicaram notas de apoio a Boujikian.

"É algo absolutamente ilegal manter alguém preso além do que é estritamente previso em sua condenação", explica Cristiano Maronna, vice-presidente do IBCCrim. "A desembargadora deveria ser premiada e não sofrer punição porque está cumprindo o que diz a Constituição."


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