Folha de S. Paulo


Diretor produz filme em realidade virtual sobre tragédia de Mariana

A tragédia em Mariana vai além do maior desastre ecológico brasileiro. Ali foi destruída uma comunidade com seus afetos e sonhos. A vila de Bento Rodrigues, a 35 km de Mariana (MG), tinha 600 habitantes e foi devastada por um "tsunami" de rejeitos de minério de ferro oriundos do rompimento de duas barragens da Samarco. Sumiu do mapa. Até agora, 17 pessoas morreram e duas estão desaparecidas.

Seus moradores foram realocados em hotéis e casas da região e vivem como refugiados de guerra: tiveram de abandonar suas casas frente a um perigo iminente. Só que aqui o caso é pior. Eles sabem que não irão voltar nunca mais para suas casas. Aqui não há esperança.

As casas caíram. Os sonhos sumiram. E o que ficou de pé é fantasmagórico. Bento Rodrigues virou lugar nenhum. Passei uma semana no local para gravar um pequeno documentário em realidade virtual (RV) sobre a tragédia.

RV é uma maneira imersiva de ver filmes, usando óculos apropriados. Você não "assiste" ao filme, você "está" no local do filme. Para teóricos, a RV é maior máquina de empatia jamais criada. Com essa máxima em mente, fui a Bento Rodrigues tentar "levar o mundo até lá" para que vivencie o drama daquelas pessoas e, assim, quem sabe, encontre conforto para os órfãos da cidade.

Os relatos da tragédia foram exaustivamente repetidos pelos órgãos de mídia. Números, datas, mapas, reportagens, análises e prognósticos nos fizeram ver a escala da tragédia e nos incitaram a formular um parecer sobre suas causas e efeitos. Entrevistando moradores, fui levado a (re)viver aquela comunidade desaparecida.

Dentro do vazio do olhar daquela gente, vi luz quando se falava das coisas boas que eles tinham vivido naquela vila. Entrei na vida e não na morte daquele lugar. Pude ver a praça com árvores que faziam sombra nas mesinhas onde se jogava truco; provei das coxinhas do bar da Sandra; nadei no rio onde os garotos brincavam com boia de caminhão, andei pelas ruas com a Josi, onde a molecada brincava de bola e pique-esconde, sem nenhuma preocupação das mães.

Eu me sentei na loja de secos e molhados do Seu Barbosa, onde se jogava conversa fora; tive respeito pela igreja "muito, muito velha" onde os católicos se reuniam e entrei na Assembleia de Deus onde Clarice cantava no coral. Conheci Seu Zezinho e Dona Irene, que ensaiavam modas caipiras na varanda de casa e faziam as pessoas pararem na rua para escutar.

Através desses relatos eu vivi um pouco daquilo que tanto se prezava na vila: a comunidade. A vila era o quintal de todos. E esse era o maior dom da cidade. Dessa comunidade saíram grandes histórias no meio da tragédia. Arnaldo Arcanjo salvou seu tio cego, surdo e mudo da lama levando-o às pressas para a parte alta da cidade. Depois, voltou e mergulhou no revolto mar de lama para salvar uma mulher que estava lutando pela vida agarrada à uma árvore. Ainda depois, desaconselhado por todos, mergulhou na lama novamente para salvar Nicolas, 3, que chorava agarrado numa perua Parati que flutuava no lamaçal.

Hoje Bento tem um herói: o Arnaldo. Chamado de Salvador por muitos ali. Outros heróis surgiram. Emerson Lindão varou noites e salvou dezenas de animais –cachorro, gato, galo, galinha, cavalo– e construiu um imenso galpão para abrigar a bicharada.

O dia a dia desse minúsculo povoado era feito de pequenos e grandes movimentos. O passatempo local era construir ou melhorar as casas. Um puxadinho aqui, um quartinho acolá, e as casas ficavam cada dia melhores. Ou quase, "pois ela tava quase pronta quando a lama desceu e acabou com tudo", me conta Ueberson.

O sonho de seu Barbosa de comprar um carro novo pela primeira vez, agora que os 70 anos se aproximam, também foi levado pela lama: ele tinha R$ 60 mil guardados atrás do guarda-roupa. Não confiava no governo desde a época Collor. "Perdi 45 anos de suor em três minutos."

Onde foram parar essas casas? O que significa perder tudo, tudo, tudo o que construiu com amor, carinho e trabalho? "Eu não quero voltar nunca mais pra lá. Não quero ver o sonho no chão", me diz Laine, uma articulada assistente escolar.

O que eu ouvi de todos, sem exceção, foi um amor desmedido a Bento Rodrigues. "A melhor cidade do mundo", foi o que me disse várias vezes Neneca, uma mãe de oito filhos, que é faxineira da escola, voltou a estudar com 38 anos de idade e, agora, aposta que vai ser professora de matemática.

Os moradores de Bento me fizeram ver que tinham uma vida luxuosa. Tenho a certeza de que não há como ressarcir essas pessoas. Nem com uma Nova Bento, que dizem que será construída.
Ali havia vida que não se recupera nem se paga.

TADEU JUNGLE, roteirista e diretor de audiovisual, realiza um documentário em realidade virtual sobre Bento Rodrigues que estreia em janeiro de 2016.


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