Folha de S. Paulo


Após acidente, médico tetraplégico vai se tratar no hospital em que atende

No mesmo espaço em que o médico Flávio Benez, 36, examina o joelho de um adolescente com uma má-formação congênita, ele é deitado, com a ajuda de seu inseparável cuidador José Carlos e de um fisioterapeuta, em uma maca de exercícios. Ali ficará por cerca de uma hora, buscando retomar um pouco mais de seus movimentos.

Ortopedista, fisiatra e professor, Flávio foi um dos profissionais mais dedicados ao incentivo da melhoria da qualidade de vida de pessoas com deficiências físicas na unidade da rede de reabilitação Lucy Montoro de Fernandópolis, a 554 km de São Paulo.

Agora, ele necessita da mesma assistência de seus pacientes, no mesmo hospital. Ele se tornou tetraplégico em 12 de janeiro de 2014, após escorregar na borda de uma piscina com pouca água e bater o pescoço no fundo.

Não fazia duas semanas que, no Réveillon, Flávio havia prometido a si mesmo trabalhar menos, passar mais tempo com a família e emagrecer. Após o acidente, perdeu 30 quilos, fechou dois consultórios, parou de dar aulas e passou a acompanhar mais o crescimento do filho, João Pedro, 7.

"Prendi a respiração o máximo que pude, mas já sabia, com o baque, que estava em uma situação muito delicada, não conseguia mexer a cabeça. Tinha de sobreviver de qualquer jeito. Precisava rever meu filho e minha esposa."

Resgatado pela mulher, Nayara Benez, 36, e por um amigo depois de dois minutos, Flávio voltou à realidade já sem os movimentos de pernas, braços e tronco e com uma lesão entre as vértebras cervicais C4 e C5, quadro extremamente grave.

"Passei toda a minha história como médico incentivando os outros a se recriarem, mesmo que tivessem movimento em apenas um dedo. Tive de ter a consciência de que necessitava brigar muito pela minha própria vida."
O ortopedista, que já realizou cerca de 3.000 cirurgias, sempre teve a fatalidade à espreita em seus pensamentos.

"Como lido com pessoas com deficiência há muito tempo, tenho boa noção do que passa um cadeirante. Tinha pânico de algo acontecer comigo. Meu carro tinha oito air bags, não me arriscava em nada perigoso e até para mexer com faca em churrasco era cuidadoso. Um escorregão tirou meus movimentos."

Passados três meses do acidente, Flávio retomou o atendimento no hospital e também a direção médica em uma AME (Ambulatório Médico de Especialidades). Não tinha ainda forças para erguer o pescoço, não havia retomado nenhum movimento nos braços e também não tinha nenhum domínio de suas funções fisiológicas.

"Numa madrugada, minha mulher teve de me limpar cinco vezes, um esforço que apenas o amor justifica. Foi extremamente difícil. Segui em frente com a força da minha família. Voltar a trabalhar era fundamental para mim."

PIPOCA

Todas as sextas-feiras, os funcionários do hospital em que Flávio trabalha estouram pipoca. Apesar de adorar o quitute, Flávio nunca aceita. "Tenho receio que uma lasquinha do milho fique entre os meus dentes e ter de precisar pedir para alguém tirar para mim. Não tenho receio de ser ajudado, mas procuro poupar as pessoas."

Mas é com ajuda de auxiliares enfermeiros que ele examina pacientes. Ele orienta como apalpar, onde mexer, que tipo de movimento fazer. "Passei a ser mais detalhista do que já era. Sei das nuances de ser cadeirante, as complexidades de não ter os movimentos, a sensibilidade."

O recepcionista Fabrício Ovídio, 19, diz que ficou 25 dias com uma dor aguda no braço direito, após sofrer um acidente de moto. "Fui examinado por dois médicos, que não achavam nada. Ele [Flávio] olhou atentamente meus exames por 15 minutos e encontrou uma lesão. Fui engessado e estou muito melhor."

Aos poucos, Flávio vai remontando sua rotina. No ano que vem, pretende voltar a clinicar em seus consultórios particulares e a dar aulas. "Minha meta é conseguir ficar em pé, em um andador. Voltar a andar não é uma obsessão. Queria ao menos recuperar o movimento de uma das mãos, assim poderia operar meus pacientes."

O conhecimento técnico e o esforço na reabilitação têm surtido efeito prático. Flávio já faz um pequeno movimento com o pé esquerdo, consegue, com muita força, erguer levemente o braço direito e está retomando parte da sensibilidade perdida do pescoço para baixo.


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