Folha de S. Paulo


Moradores de rua fotografam pés, bunda e cachorro 'surfando' em SP

Diogo nunca havia segurado uma câmera. Baiano, vive nas ruas de São Paulo desde que foi "morto pelo crack", segundo diz. "É chato entrar na casa da família e ver sua irmã escondendo as coisas por medo de ser roubada."

Diogo Viroli, 35, está limpo há cinco meses. E, durante dois dias, segurou uma câmera, fotografando a cidade para o "Minha São Paulo", projeto que deu cem câmeras descartáveis a cem moradores de rua. Após 48 horas, as câmeras foram devolvidas e, as fotos, reveladas.

Pontos que antes não lhe chamavam a atenção —uma casa azul com meninos grafitados e nenhuma janela, "como era a casa da minha avó"— foram registrados por Viroli.

Outros moradores de rua elegeram seus pés descalços na rua, uma bunda voluptuosa, um cachorro surfando sobre um pedaço de isopor em cima de um carrinho de supermercado, na feira.

Eles receberam dicas do fotógrafo Ronaldo Aguiar, membro do The Royal Photographic Society. Coisas como: prestem atenção nos ângulos, não façam imagens só na altura do olhar, observem a vida da cidade. "Alguns são excelentes fotógrafos", observou, depois que foram impressas. "No conjunto das fotos reveladas, é possível ver quem tem raciocínio visual."

Treze imagens vão formar um calendário 2016: o cão ilustrará a capa, a casa azul de Viroli, fevereiro. O ano terminará com uma imagem preta e branca da Catedral da Sé.

O projeto, que integra a rede "With One Voice", foi importado para São Paulo pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, em parceria com as ONGs inglesas Streetwise Opera e People's Palace Projects e o British Council Brasil e o Calouste Gulbenkian Foundation UK.

Moradores de rua do Canadá e do Reino Unido já haviam participado de projeto semelhante. No Brasil, ao fim dos dois dias, 91 das cem câmeras foram devolvidas —mais que as 80 devoluções dos moradores de rua de Londres.

Para Paul Ryan, o jornalista britânico que disseminou o projeto, mais interessante do que as fotos são as histórias de seus autores. "O calendário não é sobre as fotos, é sobre as pessoas que as tiram", diz ele. "Em geral, a população não entende as narrativas de quem mora na rua."

Marco Aurélio Alves Silva, 26, foi criado pela avó no Rio Grande do Sul. "Quando meus pais morreram, ela me buscou num abrigo." Aos 15 anos, perdeu a avó. "Fiquei nervoso, queria quebrar tudo no hospital." Foi a São Paulo procurar seu irmão, acabou ficando na rua. Conheceu Letícia Santos, 25. Os dois eram crianças —só foram se reencontrar em 2015, mas a "paixão é antiga".

Antes de namorar Marco Aurélio, Letícia foi casada com outro homem, com quem teve Sofia. "Por causa do meu vício na droga, abandonei minha menina de cinco meses com a minha mãe", conta ela. Há um ano, parou, diz.

Hoje, Marco Aurélio e Letícia vivem numa casa de convivência na zona norte de São Paulo.

Marco Aurélio fotografou outro morador de rua, "o neguinho", altivo, encarando a câmera. "De uma pessoa, morador de rua, ele virou arte", diz, rindo, enquanto vê a obra.

"O morador de rua pode tirar foto de outro morador de rua que um fotógrafo profissional não pode", observa Ryan. Outro retrato impactante é de um homem sentado com as pernas machucadas e o cenho franzido. É de Matheus Leandro Barbosa, 25, que disse ter gastado o rolo da câmera em três horas com o que lhe parecia atraente nas ruas —"é onde já apanhei muito", afirma.

O trabalho com 13 fotos será vendido no Festival de Direitos Humanos na Prefeitura de São Paulo, entre 7 e 13 de dezembro. O valor arrecadado (o custo de cada calendário ainda não foi definido) será revertido para organizações que trabalhem com arte e população de rua.


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