Folha de S. Paulo


Mineradora e governo têm sido desastrosos, diz biogeógrafa do ES

A Samarco, da Vale e da anglo-australiana BHP Billiton, deve parar suas atividades. Em qualquer país desenvolvido isso teria sido feito imediatamente após o desastre. A visão é da biogeógrafa Claudia Câmara do Vale, 51, professora da Universidade Federal do Espírito Santo.

Para ela, a recuperação do rio Doce levará "muito mais do que apenas uma década, como está sendo anunciado". E a Samarco "deve arcar com os custos da recuperação, nem que leve 50 anos ou mais".

Na sua avaliação, as boias, geralmente usadas em vazamentos de petróleo e colocadas na foz do rio Doce pela Samarco, são ineficazes. É coisa "para inglês ver", diz, já que a lama é pesada e desce, ao contrário do óleo, que flutua sobre o espelho d'água.

Doutora pela USP, Câmara do Vale espera que o desastre sirva para mudar as regras que regem a mineração no Brasil. Nesta entrevista, ela fala da contaminação do ambiente e da tragédia vivida pelas populações ribeirinhas.

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Folha - Qual a dimensão real do desastre provocado pela Samarco para o ambiente?
Claudia Câmara do Vale - Não vi nenhum desastre tão grande quanto esse no Brasil até hoje, que comprometesse o leito fluvial do rio Doce, que corta o Espírito Santo e deságua em Regência. Não sei se já houve no mundo ocorrência da mesma natureza. Já houve ruptura em outras barragens de rejeitos em MG, mas não de uma amplitude tão grande como essa.

Qual é a pior consequência do desastre?
São muitas as consequências; as ambientais e as sociais são as piores. No contexto ambiental, além da questão da mortandade da fauna, há modificações hidrodinâmicas do próprio rio, que terá uma carga maior para transportar até à foz. Não se pode afirmar com segurança quanto desses rejeitos chegarão à foz, pois existe uma tendência de o material ir se depositando à medida em que é transportado. Só realizando trabalhos quantitativos. Quanto ao contexto social, ao longo do rio Doce várias comunidades de pescadores irão ficar sem a renda mantida pela pesca ou/e até sem alimento. Muitas são comunidades de subsistência, que tinham no rio sua fonte de vida (proteínas dos peixes) e, nas margens dele, suas lavouras de subsistência. O rio Doce mantinha o abastecimento de várias cidades de grande porte, como Colatina, por exemplo, e outras menores, que irão sofrer com o desabastecimento. A pecuária e as lavouras de maior porte, que dependiam da água do rio Doce terão perdas incalculáveis.

Havia como impedir que a lama chegasse ao mar?
Não há como impedir. Um rio transporta e deposita sedimentos ao longo do seu curso –esse é o seu papel. As boias, usadas pela mineradora, são parte de medidas de contenção para derrame de óleo. O óleo flutua sobre o espelho d'água, enquanto a lama desce, pois é pesada. Esse tipo de medida é mostrada pela mineradora como para dizer que "alguma" coisa está sendo feita. Mas, infelizmente, é ineficaz. Para usar de um jargão, "é para inglês ver"!

Quais os danos da chegada da lama ao litoral?
Enormes –e não há como impedir. Os danos serão sentidos pela vida marinha (fitopanctons, zooplanctons, fauna bentônica etc). Regência é uma base do Projeto Tamar de desova de tartarugas marinhas. É também uma zona de transição importante de migração de várias espécies de peixes. Tudo que passar por ali sofrerá as consequências do material que alcançar a plataforma. O rio procura um nível e base, que, nesse caso, é a foz. Mesmo que os rejeitos estejam se depositando à medida que o rio corre, a água contaminada alcança a foz, o que ocorreu no final de semana. E pode se espalhar por um trecho considerável da costa, uma vez que a corrente longitudinal predominante é de norte para sul (sobretudo no verão e em um ano de El Niño). Mas pode também ocorrer de a corrente longitudinal, como no momento, ser a de sul para norte. Portanto, essa água contaminada pode atingir várias praias do Estado, dependendo da direção dessa corrente.

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Clique na imagem e veja o especial "O caminho da lama"

Por quanto tempo haverá desdobramentos desse desastre?
Por vários anos, mas o tempo pode ser reduzido se medidas eficazes forem tomadas embasadas cientificamente e em medidas tomadas em outros desastres dessa natureza mundo afora. A limpeza das margens do rio Doce é necessária, pois o material que extravasou o leito do rio, mais próximo à barragem, vai ficar sendo "lavado" tanto pelas chuvas quanto pelo próprio rio. Embora nem sempre seja possível retirar tudo, pois às vezes o acesso é impossível, tem que haver um esforço para retirar o máximo possível dos rejeitos que estão depositados às margens do rio.

É possível recompor o ambiente atingido?
Sim, a longo prazo. Muito mais do que apenas uma década como está sendo anunciado! Tudo depende da resiliência do sistema e das tomadas de decisões. Por exemplo, parar as atividades dessa mineradora seria uma medida que qualquer país desenvolvido faria imediatamente.

Quais os riscos de contaminação e para a saúde humana?
Alguns minerais contidos no rejeito, como o alumínio, por exemplo, podem contaminar diretamente os peixes que são consumidos pelas populações ribeirinhas. Essas, ao comerem os peixes, consomem junto o alumínio, que é extremamente tóxico para o homem. Quanto aos demais minerais, em grande quantidade, não posso responder. Alguns já estão presentes em alguns trechos que o rio Doce corta (Formação Barreiras do Período Terciário), mas em pequenas quantidades, como o ferro, por exemplo.

Esses metais presentes na lama têm efeito cumulativo na natureza?
Sim, têm. Vai levar muito tempo para a natureza alcançar de novo um ponto de equilíbrio. Apesar da resiliência do sistema como um todo, o retorno ao equilíbrio depende de outros fatores, como a precipitação nas cabeceiras dos rios afluentes do Doce. A chuva, ao cair nas calhas dos rios e alcançar o leito do rio Doce, transportará parte desses rejeitos, mas não todos, pois boa parte deles já se depositou no fundo e é necessária uma energia muito grande para "limpar", digamos assim, o rio. Quanto mais chuva nas cabeceiras melhor para o rio. Por outro lado, quanto mais chuva, maior é o risco das outras barragens também se romperem.

O que deveria ter sido feito logo após o rompimento da barragem?
Não havia plano para as pessoas, que dirá para a fauna e a flora. Salvar as vidas humanas teria que ter sido a prioridade; não houve um alarme para que as pessoas pudessem correr _e elas deviam ser previamente avisadas desse risco. Falando só do que eu entendo mais: a fauna do rio Doce que ainda não tinha sido alcançada pela onda de rejeitos, deveria ter sido retirada imediatamente, para a diminuição da perda de espécies endêmicas do próprio rio. Isso mostra como não havia um plano preparado pela mineradora caso uma das barragens se rompesse.

As multas consideradas no caso têm proporção com o estrago feito?
O estrago tem diferentes proporções. Quando se trata da perda de vida humana, nada pode ser reparado. Nenhuma multa trará de volta as vidas que se foram. Quanto ao ambiente, a mineradora deve arcar com os custos da recuperação, nem que leve 50 anos ou mais.

O que deveria mudar na atividade mineradora para impedir desastres assim?
Creio que essa tragédia fará com que a legislação que rege a mineração no país seja revista e que novas leis sejam anexadas às já existentes, ou em substituição às leis sem eficácia.

Qual sua avaliação sobre o desempenho da empresa e do governo nesse desastre?
Desastroso! Estão sem saber o que fazer! A mineradora teria que ter parado todas as suas atividades e tomado todas as medidas cabíveis, tanto do ponto de vista social quanto ambiental. As famílias que perderam tudo são arraigadas aos lugares por onde a onda de água e rejeitos passou. Isso pode gerar problemas sérios do ponto de vista psicológico. As pessoas que perderam seus entes estão fragilizadas. Os governos de Minas Gerais, do Espírito Santo e o federal devem agir de forma contumaz para que a população tenha, no mínimo, condições de viver. Não tem água para beber em Colatina! Uma família de 8 pessoas recebeu ontem 2 litros de água mineral! A falta d'água em São Paulo está sendo amplamente divulgada pela mídia. Por que não dar a devida importância ao fato de que as pessoas assoladas por esta tragédia, no Espírito Santo, não tenham água para beber? Há um esforço em tentar atender à essa demanda, mas está longe de ser suficiente. A falta de preparo é óbvia! Não foi levado em consideração, na época da alocação da mineradora, um plano que previsse uma ruptura. E isso é uma exigência de um EIA/RIMA.

Alguns têm comparado com o desastre da plataforma de petróleo no golfo do México em 2010. Isso faz sentido?
São dois desastres diferentes. Não se pode comparar um desastre que ocorre no mar/oceano, com um que ocorre em uma bacia hidrográfica. Ambos são grandes desastres, mas afetam a natureza de forma diferente. Enquanto o do Golfo afetou a vida marinha, o da Samarco afeta a vida terrestre e fluvial. Ambos, entretanto, geram danos ambientais, como a perda da biodiversidade, a mortandade da fauna, o impacto sobre os recursos que eram dados de forma gratuita à humanidade. Algumas espécies podem desaparecer em ambos os casos. Mas são necessárias pesquisas.

Infográfico: Dano ambiental


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