Folha de S. Paulo


Troca de plano de saúde por R$ 1 mi ameaça maior acordo trabalhista

Ueslei Marcelino - 14.fev.2013/Reuters
Em Brasília, manifestantes colocam cruzes em protesto antes de acordo com Shell e Basf
Em Brasília, manifestantes colocam cruzes em protesto antes de acordo com Shell e Basf

Depois de uma batalha jurídica que durou oito anos, o maior acordo da história da Justiça trabalhista brasileira -conhecido como caso Shell- está sob ameaça.

Em 2013, as empresas Shell e Basf concordaram em pagar indenizações de cerca de R$ 170 milhões a 1.058 ex-trabalhadores e seus filhos pela exposição a substâncias cancerígenas na fábrica de pesticidas e agrotóxicos de Paulínia (SP), além de arcarem com o atendimento de saúde vitalício para cada um deles.

Agora, cerca de 700 beneficiados negociam com as empresas a troca do plano de saúde por uma indenização de, no mínimo, R$ 1 milhão por pessoa. O novo acordo precisa do aval da Justiça.

Durante o julgamento do caso, a defesa dos trabalhadores argumentou que o plano de saúde tinha que ser vitalício porque as doenças causadas pelas substâncias usadas na fábrica podiam surgir em até 30 anos.

Uma pessoa saudável hoje, afirma Sérgio Roberto de Lucca, professor da Unicamp, pode adoecer no futuro.

A Shell e a Basf relutaram em aceitar essa tese. Derrotadas em primeira e segunda instâncias, acabaram aceitando o acordo no TST (Tribunal Superior do Trabalho). Desde então, elas pagam pela assistência médica aos ex-funcionários e seus filhos.

Nos casos de doenças mais graves, como câncer, as empresas chegam a desembolsar R$ 20 mil por mês. A assistência tem de ser integral: são pagas consultas, remédios, internações, viagens no país e hospedagem de familiar.

Shell e Basf confirmam que as negociações, que começaram em maio, estão em andamento e que a iniciativa partiu dos ex-funcionários. Elas se negam a falar em valores.

Responsável pela primeira condenação da Shell, a desembargadora Maria Inês Corrêa de Cerqueira César Targa se disse perplexa com a negociação. "Recebo com perplexidade, pelo fato de alguém querer trocar seu direito pelo resto da vida por dinheiro. A luta era assegurar a saúde dos funcionários."

Maria Inês ressaltou ainda que a exigência do plano de saúde vitalício também era para evitar que o poder público pagasse a conta do erro de uma empresa privada.

Infográfico: Caso Shell

O procurador-chefe do Ministério Público do Trabalho em Campinas, Eduardo Luis Amgarten, é contra a negociação. "[O novo acordo] pode parecer bom agora, mas e o futuro? Daqui uns anos ele [trabalhador] adoece, e aí?"

Amgarten afirmou que o novo acordo pode ser legítimo, mas precisa ser homologado pela Justiça do Trabalho. "Somos contra a venda da saúde do trabalhador."

DINHEIRO PARA SAÚDE

Advogada do grupo que negocia com Shell e Basf a troca da assistência de saúde vitalícia por indenização, Meirilane Inghrette Dantas Dourado nega que eles estejam interessados só no dinheiro.

Segundo ela, muitos querem utilizar a nova indenização para adquirir planos de saúde para toda a família.

"A assistência dada pelas empresas é somente ao ex-trabalhador e ao filho nascido no período de trabalho. Isso, no seio familiar, fica complicado, porque a mulher também precisa de atendimento de saúde", disse ela, embora admita que cada um poderá usar o dinheiro como quiser.

É o caso de um rapaz de 20 anos, que pediu para não ter seu nome revelado. Ele diz que pensa em aderir ao acordo para construir uma casa.

O jovem é filho de um ex-trabalhador da Shell e foi beneficiado com plano vitalício e indenização de R$ 60 mil. O dinheiro, porém, já acabou.

O pai, de 61 anos, trabalhou por 11 anos na Shell como operador de empilhadeira. Hoje, sofre com doenças nos ossos e nas articulações e faz tratamento contra hipertensão. Ele tenta convencer o filho a não aceitar o acordo.

Segundo ex-funcionários, as negociações foram iniciadas por Donizete Martins, 51, que atuou na fábrica de 1997 a 2002. Ele não quis falar.

Dos 1.058 beneficiados, 469 são ex-trabalhadores. Os demais são filhos deles.

Segundo Sérgio Roberto de Lucca, professor de medicina da Unicamp, os filhos de mulheres que trabalharam na empresa do final dos anos 1970 ao início dos anos 2000 são os que mais correm risco de adoecer no futuro.

O ex-funcionário Sidnei Pereira Bernardo, 61, acha um risco os trabalhadores e seus filhos ficarem sem a assistência médica vitalícia. Apesar de não ter doenças comprovadamente relacionadas às substâncias, ele faz tratamento contra hipertensão.

Segundo o Ministério Público do Trabalho, desde 2007, mais de 60 ex-funcionários morreram.


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