Folha de S. Paulo


Obra de ficção cria 'liminar' e vira alvo de investigação da PF

Conhecido por mesclar elementos de ficção e realidade em seus livros, o escritor Ricardo Lísias, 40, nunca imaginou que sua obra fosse ganhar vida de verdade.

No e-book "Delegado Tobias", em que o personagem título investiga a morte do escritor Ricardo Lísias, o autor usou nomes de pessoas reais, recortes de jornais e documentos judiciais, criando uma permanente desorientação no leitor.

O experimento se estendeu às redes sociais, onde foram publicados trechos da obra.

A história chegou à polícia, ao Ministério Público e à Justiça federais, que parecem não ter entendido o conceito.

Resultado: um inquérito foi aberto para investigar a suspeita de falsificação e uso de documento público por Lísias em sua obra de ficção.

"Eu não falsifiquei o documento, eu inventei o documento", diz Lísias, autor de livros como "Divórcio" e "O Céu dos Suicidas". "A literatura foi para a página policial. Agora, virou realidade."

Em um dos documentos criados para o folhetim virtual, com aparência similar à de uma decisão judicial real, um relator fictício do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, João Eleonor Freire Costa Neves, defere liminar para retirar a obra "Delegado Tobias" de circulação.

A justificativa é que o público leitor médio "não tem discernimento suficiente para discernir se está diante de uma obra de ficção ou um mero relato".

O caso passou a ser investigado no mundo real após a assessoria de imprensa da Justiça Federal repassar denúncias sobre a publicação da decisão falsa no perfil do escritor no Facebook.

Eduardo Knapp - 15.abr.11/Folhapress
Ricardo Lísias, investigado pela PF por 'documentos judiciais' que criou para sua obra
Ricardo Lísias, investigado pela PF por 'documentos judiciais' que criou para sua obra

O Ministério Público Federal avaliou que havia indícios de crime de falsificação e determinou a abertura de inquérito. Nesta semana, Lísias recebeu intimação para prestar depoimento, marcado para outubro.

Para o advogado do autor, Pedro Luiz Bueno de Andrade, elementos artísticos, no caso das decisões fictícias, foram descontextualizados, levando a um equívoco.

"Juridicamente falando, para responder pela falsificação de documento público, ele tem que ser capaz de causar prejuízo a alguém", afirma.

Surpreso com a investigação, o escritor conta que até o momento nem mesmo as pessoas reais transformadas em personagens da obra ficaram ofendidas.

LIMITES DA FICÇÃO

Entre os nomes reais citados está o do professor de literatura Pedro Meira Monteiro, da universidade norte-americana Princeton.

"O experimento ficcional do Lísias é justamente testar os limites da ficção, aproximando-a da realidade, de maneira que essas situações aconteçam: alguém se sente dentro dela, como se fosse presa da ficção", afirmou o professor, por e-mail.

"O que eu não entendo é que a polícia não entenda que se trata de ficção, portanto é óbvio que os documentos são falsos. Falsos, não falsificados! Eles estão preocupados com uma realidade paralela", diz, classificando o caso como "esquizofrênico".

A Justiça Federal afirmou que recebeu diversos questionamentos de jornalistas sobre os documentos publicados no Facebook do escritor e que apenas informou a Procuradoria sobre a possibilidade de serem falsos.

Já a Procuradoria afirmou que, ao receber a notícia, "encaminhou os elementos disponíveis" à PF para investigação. O órgão afirmou ainda que o procedimento está em curso, sem previsão para ser concluído.

A PF afirmou que "não investiga escritores por suas obras de ficção".

No entanto, o inquérito foi instaurado em razão da requisição do Ministério Público Federal, que obrigatoriamente tem de ser cumprida.


Endereço da página: