Folha de S. Paulo


No RS, prédio que foi base de facção criminosa é ocupado por sem-tetos

Com vista para o rio Guaíba, cartão-postal de Porto Alegre, um prédio de sete andares, construído nos anos 60, nunca teve um morador de fato e de direito.

Erguido para abrigar 50 famílias, já passou por quatro invasões e uma reintegração de posse, com direito a policiais invadindo o local de rapel, e foi palco de um plano criminoso cinematográfico.

Em 2006, bandidos compraram o prédio e construíram um túnel na tentativa de roubar dois bancos. O plano, porém, foi descoberto. A passagem, lacrada pela Polícia Federal, continua lá.

Hoje, o prédio, avaliado em R$ 4 milhões, está degradado, com janelas quebradas, fiações expostas e pichações e é alvo de uma disputa entre "sem-teto", que voltaram a invadir o local, o proprietário e o governo gaúcho.

Desde a década de 1960, a construção nunca serviu oficialmente ao seu propósito original: moradia popular.

Financiado pelo extinto BNH (Banco Nacional de Habitação), o prédio foi repassado à Caixa Econômica Federal, que usou o espaço como escritório, abandonando-o há mais de 20 anos.

Em 2005, a empresa Risa comprou o prédio do governo federal por R$ 600 mil –o plano era revendê-lo. Um ano depois, o valor dobrou. O prédio foi comprado por criminosos, segundo a polícia, ligados à facção criminosa PCC, por R$ 1,2 milhão.

A quadrilha usou o prédio para cavar um túnel de quase 200 metros até o interior de dois bancos que ficam nas proximidades.

Mas os ladrões foram presos em flagrante enquanto cavavam o buraco. O grupo foi apontado pela polícia como o responsável pelo maior roubo a banco da história, no ano anterior: o do Banco Central, em Fortaleza (CE).

Roberto Vinícius - 2.set.2006/Correio do Pov
Suspeitos são detidos em prédio em Porto Alegre escavando túneis que seriam usados em furtos a agências do Banrisul e da Caixa Econômica
Suspeitos são detidos em prédio escavando túneis que seriam usados em furtos a bancos

O prédio de sete andares, cada um com 300 m², é habitado por 20 famílias da Ocupação Saraí desde a invasão, em 2013. Nenhum elevador funciona, e há um único chuveiro elétrico no local. Para usar o banheiro, é necessário subir as escadas com baldes.

Apesar das dificuldades, Márcia Uliane Medeiros de Morais, 20, afirma que suas condições de moradia agora são melhores. "Não reclamo de nada, antes era muito pior. Eu morava com minha mãe e cinco irmãos em um cômodo com banheiro", conta Márcia.

Ela é responsável pelo espaço Ciranda, no primeiro andar. Ali há livros infantis, brinquedos velhos, bonecas encardidas e janelas sem vidro. O lugar funciona como uma espécie de creche, com voluntários que fazem rodas de leitura e atividades.

Ceniriani Vargas da Silva, 27, integrante do MNLM (Movimento Nacional da Luta pela Moradia) e que morou no prédio antes da compra pelos criminosos, diz que o local não estava tão deteriorado.

"Para fazer de conta que estava em obras, eles [os criminosos] destruíram o prédio por dentro, quebraram pias, tiraram os forros, detonaram tudo", relembra.

Ele também estava no prédio durante a pior reintegração de posse testemunhada pelo MNLM, em 2007.

"A Polícia Militar entrou de rapel pelo prédio ao lado. Fecharam a rua e bloquearam nove quadras. Fomos encurralados", afirma.

DECRETO

Em 2014, o então governador Tarso Genro (PT) decretou que o imóvel voltasse a ter sua finalidade inicial: moradia popular.

Mas a empresa Risa, que diz que ter sido enganada por um "laranja" do PCC, voltou a ser proprietária do imóvel –devolveu na Justiça o dinheiro pago pelos criminosos– e não aceita negociá-lo.

Com o decreto, o imóvel foi avaliado em R$ 2 milhões, que seriam pagos pelo Estado ao proprietário.

Em uma audiência na Justiça no ano passado, porém, o proprietário pediu R$ 4 milhões ao Estado. Ricardo De Conto, dono da Risa, não atendeu a reportagem.

O edifício fica em frente ao cais Mauá, no centro de Porto Alegre. A área sendo revitalizada, com inspiração no Puerto Madero, área turística de Buenos Aires (Argentina).

A gestão do governador José Ivo Sartori (PMDB) não pretende cumprir o decreto do governo anterior.

"Diante das circunstâncias financeiras em que o Rio Grande do Sul se encontra [o salário dos servidores foi parcelado, não possuímos previsão de que tal pagamento venha a ocorrer", disse a Secretaria Estadual de Obras.

Sem acordo, o prédio será colocado de novo à venda.


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