Folha de S. Paulo


'Vão me tirar daqui num caixão', disse paciente de casa terapêutica à mulher

À primeira vista, o lugar "parecia um paraíso". No cardápio, estavam cinco refeições diárias. Atrás dos portões e do muro alto, havia um gramado, uma piscina e quadra esportiva.

Coordenadores também tranquilizavam os familiares: pacientes teriam direito a cama confortável em quarto para duas pessoas, com banheiro e chuveiro quente.

Para driblar os efeitos da dependência, haveria atividades de apoio e atendimento psicológico.

A expectativa, no entanto, era desfeita após poucas horas do início do tratamento no centro terapêutico Voltar a Viver, localizado em Cajamar (SP). Pudera: nada era como o esperado.

Em vez de duas pessoas, o quarto era compartilhado entre até 16 pacientes –em alguns casos, idosos dividiam o local com adolescentes. No lugar da cama confortável, beliches e colchões finos, espalhados até no corredor.

"Se não trouxessem alguns cobertores, teria morrido de frio", conta Irineu Herreira, 69, que dormiu no chão nos primeiros dez dias de tratamento. Nos outros, um princípio de pneumonia fez com que fosse promovido à parte de cima de uma beliche.

Ainda assim, tinha que lidar com a água fria que saía de um dos dois canos que compunha o chuveiro.

A diferença não terminava aí. O acesso à área de lazer era livre apenas para os monitores. Internos passavam a maior parte do tempo dentro do quarto e podiam caminhar no pátio apenas em horários fixos. Pela manhã, participavam da limpeza.

À noite, dormiam sob o barulho de gritos e choro vindos de um quarto supostamente usado para castigo.

"Ouvi muita gente ser agredida", relata Roberto Moura, 55, que ainda tenta lidar com o trauma dos cerca de dois meses que passou no local. "Aquilo não era um lugar de recuperação. Era um inferno".

Segundo ele, tudo mudava nos dias de visitas –acompanhada por monitores e liberada apenas uma vez ao mês.

"Era um lugar bonito só aos sábados e domingos".

'LAVAGEM'

As prometidas cinco refeições são outro ponto que ninguém gosta de lembrar.

"Só de entrar no refeitório já me revirava o estômago. Era uma lavagem", conta Irineu Herreira.

Segundo ele, as ligações, que eram frequentemente monitoradas, impediam que ele pudesse contar o que ocorria à família –ao todo, os filhos pagaram R$ 5.400 na expectativa de ajudar o pai a abandonar o alcoolismo.

Ainda assim, ao vê-lo pela primeira vez, magro e doente, a família desconfiou. Tempo depois, um grupo de jovens fugiu do local –o que só aumentou a suspeita.

Até que, um dia, Herreira sussurrou ao telefone para a mulher: "Vocês vão me tirar daqui num caixão".

Acabou resgatado pelos filhos no dia seguinte, que procuraram a delegacia e a Defensoria Pública de São Paulo. O espaço acabou interditado em junho deste ano.

Hoje, a instituição "Voltar a Viver" é considerada um caso emblemático dos problemas que agora levam o governo a rediscutir as regras das comunidades terapêuticas.

Para Moura, o lugar não condizia com a promessa e o nome que divulgava. "Voltei a viver quando saí de lá".

A Folha ligou para representantes da instituição, mas não conseguiu contato.

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