Folha de S. Paulo


De clipe a peça de carro, fraudes em compras da PM atingem R$ 10 mi

Compra de papel higiênico, bolacha, açúcar, clipe, pen drive, peças de veículos, programas para computador, ternos, reparos elétricos e hidráulicos, pinturas e, até, reforma de um lago de carpas.

Esses e outros itens foram alvo de um esquema de fraudes em licitações instalado no Comando-Geral da Polícia Militar de São Paulo que envolveu ao menos R$ 10 milhões em dois anos, segundo uma sindicância da própria PM.

As suspeitas, por ora, recaem sobre um oficial, o tenente-coronel José Afonso Adriano Filho, que confirmou parte do esquema e disse ter agido por ordem ou conhecimento de seus superiores.

"Assumo tudo o que fiz. Tudo foi feito somente para o bem e jamais para o mal", disse à Folha o tenente-coronel, em sua casa em um condomínio em Itu (101 km de SP).

Desde 2012 na reserva, Adriano Filho corre risco de cassação de sua patente, segundo a Secretaria da Segurança Pública, que diz ter avisado os órgãos responsáveis. Ele, que atuava no departamento desde 2000, afirmou que os desvios eram para bancar outras despesas da corporação -e não para enriquecimento próprio.

Editoria de Arte/Folhapress

As fraudes ocorreram ao menos entre 2009 e 2010, período em que foram comandantes-gerais da PM os coronéis Roberto Diniz e Álvaro Camilo, nas gestões José Serra e Alberto Goldman (PSDB). Parte do esquema incluía usar dinheiro da PM para pagar por produtos que não eram entregues, por exemplo.

A investigação começou em fevereiro de 2012, após denúncia anônima, e terminou em agosto de 2014, com pedido de punição ao operador da fraude. O resultado foi enviado à Promotoria e ao Tribunal de Contas do Estado.

Pelo relatório, assinado pelo coronel Levi Anastácio Félix, atual corregedor-geral da PM, a auditoria detectou irregularidades em todas as 458 licitações analisadas -as compras eram fracionadas para escapar da fiscalização externa e feitas de empresas que perderam os certames.

PEÇAS E DINHEIRO VIVO

Algumas compras chamam a atenção pelo volume, pois, em tese, seriam destinadas só ao Comando-Geral: 9.700 quilos de açúcar em três meses, 23.300 pacotes de biscoito em cinco meses e R$ 72.570 em gastos com clipes para papel. Não houve comprovação de entrega de todos os produtos.

Um dos casos mais graves ocorreu na aquisição de peças para manutenção da frota do comando -pelo preço de R$ 1,7 milhão. Nenhuma peça paga foi entregue.

Reynaldo Turollo Jr/Folhapress
Frente da empresa Rogep, que foi paga pela PM sem ter comprovado a entrega de peças
Frente da empresa Rogep, que foi paga pela PM sem ter comprovado a entrega de peças

O tenente-coronel Adriano Filho confirmou à sindicância e à Folha ter simulado as compras. Mas disse ter feito isso para saldar a dívida informal de algumas unidades da PM que teriam comprado fiado.

Com isso, a Rogep Comércio de Auto Peças e Serviços recebeu a quantia, mas não entregou as peças -com a justificativa de que já tinha fornecido extraoficialmente antes. Não há na sindicância, porém, nenhuma prova da existência da dívida alegada.

O oficial apontado como operador do esquema disse ainda ter atuado como uma espécie de banco. Mantinha dinheiro em espécie para abastecer outros setores da PM e pagar despesas "corriqueiras" –e estimadas em R$ 1 milhão em dois anos.

Segundo Adriano Filho, o dinheiro era repassado ao Comando-Geral por ao menos duas empresas, a Sistécnica e a Rafink, que, depois, eram ressarcidas por meio de licitações direcionadas a elas.

OUTRO LADO

O tenente-coronel José Afonso Adriano Filho, suspeito de operar o esquema de fraudes em licitações no Comando-Geral da PM, confirma parte das irregularidades, mas nega ter feito tudo sozinho ou para proveito próprio.

"Não fiz nada sem ordem. Todas as melhorias executadas, não só no Quartel do Comando-Geral como em outras unidades, tinham ciência e autorização dos superiores. De todos os superiores", diz ele, que não quis citar nomes.

Sobre as irregularidades nas compras, ele diz que parte era para pagamento de despesas da própria PM, como no caso das peças para veículos. "É ilegal, mas não é imoral. Tudo o que foi feito no período foi unicamente com vistas à adequação de todo o complexo do QCG [Quartel do Comando-Geral]. Tudo foi feito somente para o bem [da PM] e jamais para o mal."

O oficial diz que, embora não haja comprovação, a maior parte dos produtos comprados era entregue. Procurado, o atual comando da PM não respondeu se vai abrir nova investigação para apurar eventual participação de outros oficiais.

Em nota, a Secretaria da Segurança Pública informou que a sindicância concluiu pela "necessidade de responsabilização" do oficial "pela prática de, em tese, atos de improbidade administrativa e infrações penais".

Por isso, enviou relatório a outros órgãos, como o Ministério Público, a Secretaria da Fazenda e o Tribunal de Contas do Estado. "[A Secretaria da Segurança] determinou a instauração de Conselho de Justificação, com a finalidade de analisar a viabilidade de cassação do posto e da patente do tenente-coronel", diz a nota.

O coronel Álvaro Batista Camilo, que comandou a PM entre 2009 e 2012 e hoje é deputado estadual pelo PSD, negou ter conhecimento de fraudes em sua gestão. "Não sabia que ele estava envolvido nisso. Isso é um absurdo. Ninguém da polícia dá uma ordem para alguém cometer alguma coisa errada", disse.

"O próprio regulamento diz: ordem absurda não se cumpre. Tenho certeza absoluta de que ninguém deu ordem para que fizesse algo errado, principalmente com essa questão financeira." O ex-comandante Roberto Diniz não foi localizado.

Dono da Rogep Auto Peças, Rogério Torres disse que sua empresa atua no ramo há 30 anos, fornece peças a vários órgãos da PM e não tem nada a acrescentar ao já declarado por Adriano Filho.

As empresas Rafink e Sistécnica, citadas na sindicância como tendo adiantado dinheiro ao Comando-Geral em troca de vencerem licitações, não foram localizadas.


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