Folha de S. Paulo


'Bandido não será intimidado por cidadão armado', diz ex-secretário

Ex-secretário nacional de Segurança Pública, José Vicente da Silva Filho afirma que a ideia de que a arma serve para a defesa do cidadão é falsa. Leia entrevista abaixo.

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Folha - Que benefícios o Estatuto do Desarmamento trouxe?

José Vicente da Silva Filho - O fato é que, no Brasil, onde mais ou menos 10% da população tem armas na mão —há 16 ou 17 milhões de armas—, mata-se seis vezes mais que nos Estados Unidos, onde 90% da população está armada. Arma faz mal aqui no Brasil, por causa da impunidade. Quem mata tem 97% de chance de não ser preso. No Estado da Flórida, se você der um tiro em área pública, você pega 20 anos de cadeia.

Uma ideia ingênua que os armamentistas defendem é que com mais armas os bandidos ficariam intimidados. Mas a pesquisa do Daniel [Cerqueira, economista do Ipea] mostra que, quando aumentam as armas, aumentam os homicídios. Já os crimes contra o patrimônio [roubos] ficam praticamente inalterados. Ou seja, os bandidos estão pouco se lixando se tem mais armas na mão da população.

Foi desenvolvida alguns anos atrás uma pesquisa com uns 300 casos de latrocínio. O que ela mostra? Dos indivíduos que estão sendo assaltados e que tentam reagir, 13,8% conseguem ser bem-sucedidos, o resto se ferra. O pior: quando há reação, tem uma média alta de vitimização, porque o criminoso acaba matando também a companheira ou o companheiro da vítima. Quando você resolve reagir, sua chance de sobreviver reduz drasticamente. Os bandidos não vão se intimidar com a população mais armada. Eles vão ter ali mais um objeto para roubar.

Caminho da Arma; Ilustrações: Adams Carvalho / Editoria de Arte/Folhapress

Os detratores do desarmamento afirmam que o número de homicídios não diminuiu de 2003 para cá. A taxa por 100 mil habitantes está semelhante à de 2003 [ano da lei do desarmamento]. Qual sua análise?

O Daniel [do Ipea] mostra que, a partir de 1983, houve uma elevação muito acentuada no aumento de armas na mão da população. Na medida em que a população foi se armando, dada a facilidade da época, os homicídios foram explodindo no Brasil. Só se interrompeu essa ascensão em 2003, com a lei do desarmamento. Estados que entregaram mais armas, como São Paulo, tiveram queda maior nos homicídios, enquanto Estados que entregaram menos, como Alagoas, tiveram uma explosão de violência. Depois, deu uma patinada e [o número de homicídios] começou a subir de novo. O impacto da lei do desarmamento foi claro. Freou uma tendência de alta de 20 anos. Para se ter uma ideia, o aumento de homicídios nesse período [de 1983 a 2003] foi, em média, de 8% ao ano.

Por que os homicídios subiram de novo nos anos seguintes?

Em 2002, no governo FHC —eu fui secretário nacional no governo dele—, foram introduzidos mecanismos como o Fundo Nacional de Segurança Pública e o Fundo Penitenciário Nacional. Só que, depois da lei do desarmamento, nós não tivemos mais uma política nacional de segurança pública. O que acontece também é que o estatuto em si não é a bala de prata da questão da violência. O que a gente sabe é que ele é incapaz de segurar, hoje, o crescimento [da violência]. Mas, se ele for liberalizado, como se pretende, pode piorar muito o que já é ruim.

O que o sr. acha do projeto de lei que pretende dar à Polícia Civil, além da Federal, a possibilidade de registrar armas?

O projeto praticamente obriga o delegado a dar [o registro da arma]. O delegado não terá mais o poder discricionário, desde que o sujeito atenda os requisitos —avaliação psicotécnica, habilitação para uso da arma e não ter antecedentes criminais. Eu sou psicólogo, eu sei que o exame psicotécnico é só para detectar malucos. Já o de habilidade para utilizar a arma é dar um tiro numa parede —ele não habilita ninguém a usá-la numa emergência ou numa situação de estresse.

Acabar com a discricionariedade não seria positivo? Para uma lei, não é mais apropriado aplicar critérios objetivos?

Neste caso, é preferível a arbitrariedade. O que significa 'antecedente criminal' na nossa legislação? É o indivíduo ter sido condenado na Justiça. Aquele bandidinho que tem dez passagens na polícia e não foi condenado nenhuma vez não tem antecedente criminal. Ele poderá ter arma.

O principal argumento contrário ao projeto de lei é que mais armas legais poderão ser desviadas e cair no crime?

São dois argumentos. O primeiro é que uma parte delas será desviada para o crime. O outro é que o indivíduo não terá a segurança que ele imagina usando a arma. Eu não confio, por exemplo, no vigilante privado. O preparo exigido pela Polícia Federal é insuficiente. O policial é preparado para usar a arma sob estresse, na hora da adrenalina. E esse tipo de preparo [para vigilantes privados] não existe, evidentemente. O preparo deles significa pôr uma cobertura nos olhos, outra no ouvido, e dar um tiro numa parede. O treino obrigatório para o vigilante é de cerca de cem tiros.

Uma coisa que eu aprendi na academia é que a arma é feita para matar, não para assustar. A arma é muito eficiente para matar, e pouco eficiente para defender. Por que dezenas de policiais de São Paulo —que fazem treinamento de 700 tiros, enquanto em Nova York são 500 tiros— morreram em assaltos em horário de folga? Porque eles são pegos em situação de surpresa. Então, a arma para defender é uma porcaria. Estão vendendo uma ilusão.

Editoria de Arte/Folhapress

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