Folha de S. Paulo


Cracolândia, 20: área de consumo livre da droga se popularizou em 1995

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Negão e Keiti a viram nascer. Cresceram ao seu lado. Ele, dos 9 aos 34 anos. Ela, dos 13 até agora, aos 38. Na última semana, ele quis deixá-la. Ela não tem data para ir embora.

Sílvia estava presa quando ouviu falar sobre ela pela primeira vez. Ao sair da penitenciária, onde cumpriu 25 anos, foi conhecê-la. Pelos 13 seguintes não se largaram mais. Janaína foi encontrá-la somente depois de grande.

Negão, Keiti, Sílvia e Janaína já se "trombaram" por ali, onde é impossível não saber quem é quem. À pergunta sobre onde vivem ou com quem andaram, a resposta é uma só, há 20 anos: cracolândia.

O nome que virou sinônimo do perímetro no centro de SP onde o crack é consumido livremente começou a se popularizar em 1995, quando passou a ser usado pelos jornais.

"Quadrilátero do crack'' era outra forma de se referir ao local, inicialmente formado entre as ruas Guaianases, Vitória e Mauá e a avenida Duque de Caxias, na Luz.

Apesar de ter a identidade reconhecida naquele ano, o problema vinha de longe. Pelo menos desde o início daquela década, diz o delegado aposentado Alberto Corazza, 75, ex-titular da divisão de prevenção do Denarc, o departamento de narcóticos da Polícia Civil de São Paulo.

"A primeira apreensão que fiz foi lá por 1990. Eu havia voltado dos Estados Unidos e alertado que o crack ia se espalhar", relembra Corazza.

Estava certo. "O Departamento Estadual de Narcóticos de São Paulo fez anteontem à noite a primeira apreensão de 'crack' do Estado. Os 220 gramas da droga foram encontrados com um barbeiro na zona leste. O 'crack' é cinco vezes mais forte que a cocaína", informou a Folha no dia 24 de junho daquele ano.

A notinha daquele dia, um domingo, retrata o caminho da droga em São Paulo. Antes de se instalar na Luz e transformar a chamada Boca do Lixo em cracolândia, o crack já havia passado pela zona leste.

Dez meses depois, em abril de 1991, a Folha informava que a polícia havia encontrado um laboratório de crack na Liberdade, região central. Após menos de um ano, em fevereiro de 1992, o mesmo que estava acontecendo na vida de Eduardo José Gonzaga, 34, o Negão, era capa de "Cotidiano": "Crack substitui cola de sapateiro e vicia meninos nas ruas de São Paulo".

Àquela altura, o menino que havia "colado na Luz" em 1990 para vender balas e fazer pequenos furtos já havia desistido das outras drogas. O crack dominava.

"A gente tomava daqui da Luz até a avenida Rio Branco", diz. "Já foi muito maior. Hoje, não tem nem um terço do que tinha antes." O caminho dele era o mesmo de Keiti Vilela da Silva. Criada na Barra Funda, mudou-se de vez para a região também em 1990.

Tinha então 13 anos. Estava apaixonada pelo homem que seria pai de três de seus 12 filhos. E pelo crack. "Joguei tudo para o alto e fui pra vida do crime", afirma.

Assim como Negão, ela também "puxou cadeia". Também como ele, voltou para o centro. Hoje, tenta reatar o contato com dois filhos que, colocados para adoção, foram morar na Europa.

O repórter-fotográfico Egberto Nogueira, 49, guarda a recordação dos dias em que passou "mergulhado" na região para produzir, com o jornalista Elio Gaspari, uma das primeiras grandes reportagens sobre a cracolândia, em 1994, na revista "Veja".

Guarda também a impressão de que o problema era menor. "Já tinha gente de classe média fumando, menina se prostituindo, mas era um fenômeno de São Paulo. Não havia se espalhado", diz.

TRÁFICO

Negão e Keiti conheceram a droga ainda crianças. Sílvia Regina Ferreira, 59, só depois dos 40. Presa em 1976, por assassinato e ocultação de cadáver, saiu da cadeia em 2000. Crescera na Boca do Lixo e foi para lá que voltou.

Desempregada, aceitou o convite de uma conhecida dos tempos de prisão. Foi parar em uma fazenda em Mato Grosso, onde a droga era feita e depois mandada para São Paulo. Voltou depois de seis meses, viciada.

"Fomos para uma fazenda com uns galpões diferentes onde o crack secava", diz. Assim como Negão faz agora, Sílvia se agarrou à Cristôlandia (igreja evangélica que oferece tratamento na região) "para não morrer", diz.

É o mesmo que após mais de dez anos de vício Janaína da Conceição Cerqueira Xavier, 35, fez e torce para que o marido, inscrito no programa Braços Abertos, da prefeitura, também faça.

Mãe de oito filhos, ela divide dois cômodos com quatro deles e o marido e é uma das que resiste na "pensão azul". O hotel fazia parte do programa e foi descredenciado pela prefeitura por estar precário.

Os moradores que restaram ali devem ser transferidos para hotéis na alameda Barão de Limeira (centro) e na Freguesia do Ó (zona norte).

A famílias não concordam com as regras e o tamanho dos novos locais. Janaína tem um motivo a mais para não querer sair. Há cinco anos não tem notícias da filha mais velha, de 19 anos, viciada em crack. "Aqui é o único lugar que ela pode vir me procurar."

Colaborou o Banco de Dados


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