Folha de S. Paulo


Com igrejas bilíngues e lojas típicas, haitianos mudam cara de bairro em SP

"Merci, Seigneur! Merci!", mãos levantadas ao céu, grita o pastor. Domingo, 9h, e a igreja Assembleia de Deus, no Glicério, está cheia. Acomodadas em cadeiras de plástico, cerca de 70 pessoas cantam sem parar. Não fosse o idioma, o ritmo já deixaria claro que algo ali é diferente.

Com exceção de um missionário africano, de duas mulheres e de um religioso brasileiros, todos são haitianos.

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A menos de 50 metros, dez jovens negros com fivelas cromadas nos cintos e camisas cor-de-rosa abotoadas até o colarinho recepcionam os fieis em outra celebração. Trata-se da Igreja Batista Bethlehem.

Ali ao lado da Liberdade, tradicional reduto oriental, os haitianos já mudaram a cara da região. Assim como a cidade cresceu com italianos, árabes e judeus, rapidamente São Paulo vai ganhando um novo bairro de imigrantes, um "bairro negro".

Há também africanos, mas os haitianos são a maioria.

"Pode escrever aí, mais um ano e o Glicério vai ter só loja de haitianos", vaticina o pastor Luciano Gomes, 44, que aprendeu francês e creole [língua derivada do francês].

Editoria de Arte/Folhapress

Igrejas evangélicas com cultos bilíngues são ao menos três. Lojas de roupas, cabeleireiros, lan houses e, agora, um restaurante de comida típica também abriram suas portas na região.

Aos poucos, essa população que busca por empregos e se fixar na capital vai fazendo o dinheiro girar no bairro.

O "epicentro" desse fluxo fica na rua do Glicério, na Missão Paz -entidade ligada à Pastoral do Migrante. Andar por ali é mergulhar numa extensão paulistana de Porto Príncipe (capital do Haiti).

Desde o início de 2014, o local passou a abrigar um número cada vez maior desses imigrantes enviados pelo governo do Acre, por onde chegam ao país. Diariamente, cerca de cem novos haitianos eram enviados a São Paulo.

O fluxo inesperado gerou atrito entre os Estados. Atualmente, no entanto, o número caiu para não mais do que 30 por dia -o que surpreendeu o coordenador da Missão Paz, padre Paolo Parisi.

Segundo a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Acre, 850 haitianos permanecem em um abrigo em Rio Branco. O Estado, porém, parou de pagar as passagens para que eles saiam de lá e espera que o governo federal assuma a gestão do local.

'REI DO GLICÉRIO'

À Missão Paz também acorrem diariamente centenas de haitianos já instalados em São Paulo. Procuram informações de quem chegou, de quem partiu e, principalmente, buscam por emprego.

Às terças e quintas-feiras, o salão da igreja Nossa Senhora da Paz, onde funciona a entidade, recebe empresários em busca de mão de obra.

O número de contratantes, porém, vem caindo, e o emprego, cada vez mais, parece estar do "outro lado da rua".

Na calçada em frente à igreja, o fluxo é intenso numa pequena galeria. Ali, Robson Pierre, 42, é o dono de um salão de cabeleireiros, de uma lanchonete, de um restaurante e de um box alugado apenas para disponibilizar acesso gratuito à internet.

Há três anos no Brasil, o ex-vendedor de carros no Haiti rejeita o título de "Rei do Glicério". "Todo mundo fala de mim, mas ninguém me conhece. Saio cedo e trabalho até de noite. Então não sou rei de nada. Só trabalho", diz, atrás do balcão em que se vê macarrões instantâneos, bolachas recheadas, CDs e shampoos, assim mesmo, tudo junto.

Nem todos, porém, encontram por aqui a prosperidade de Robson. Metade dos fiéis da igreja do pastor Luciano está desempregada.
Charles Lunes, 33, é um deles. Paga R$ 600 de aluguel. Vive com os R$ 300 que restam do salário da mulher. Enquanto procura por trabalho, frequenta a Assembleia de Deus. Seu filho, Charles Luckson, 9, é baterista na igreja.

"São pessoas que vieram para cá depois de ir para o Sul. Os contratos acabaram e então voltaram", diz o pastor.

Entre eles, um chama a atenção. John Vixamar, 28, fala inglês, espanhol, francês, creole e agora português. Fiscal de um supermercado, recebe cerca de R$ 1.000. Há um ano cursa engenharia civil, graças a uma bolsa.

Irmão de um médico que tenta revalidar o diploma no Brasil, faz planos para depois de formado. "Vou ganhar mais e ter minha casa", afirma. "Merci, Seigneur! Merci!"


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