Folha de S. Paulo


'Temos que parar de pensar que a água é um recurso infinito', diz especialista

Não há caminho de volta: a crise hídrica deve continuar sendo uma das maiores preocupações dos próximos governos e gerações, segundo a doutora em ecologia aplicada Micheli Kowalczuk Machado.
"A gente tem um pensamento de que a água é um recurso infinito e abundante aqui. Temos que parar com isso", afirma.

Autora de estudo apresentado na Esalq (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da USP) sobre a governança do sistema Cantareira, Micheli considera "mínimas e paliativas" as ações tomadas pelo governo do Estado de SP e pela Sabesp (empresa de saneamento paulista) para controlar a seca do reservatório.

"Não dá para ficarmos rezando todo ano para chover. A gente começou a falar em rodízio de água e consumo consciente apenas quando chegamos a um estado avançado de escassez."

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Folha - Quais os principais fatores que levaram o sistema Cantareira a chegar ao quadro atual?
Micheli Kowalczuk Machado - É algo que está relacionado a problemas de governança. Já tivemos situações preocupantes no Cantareira em 2003, então essa escassez não é uma coisa nova, é um problema histórico. A responsabilidade da Sabesp e da falta de disposição política para atuar nessa questão é enorme. A questão da governança prevê que haja uma mobilização social para discutir esses problemas. Isso melhorou por causa da crise, mas por que não foi assim desde sempre?

E quais foram os erros na gestão do Cantareira?
Não existem programas efetivos que foquem na preservação ambiental. Há sete unidades de conservação na área do reservatório que poderiam ter colaborado muito. Era preciso desenvolver uma distribuição mais eficiente, já que o desperdício e o número de furtos que acontecem nesse processo são muito grandes. Também é fundamental que o esgoto seja tratado para que haja mais recursos disponíveis. Se a cidade de São Paulo mantivesse a qualidade dos recursos hídricos do município, talvez não fosse necessário ir buscar água na região do Cantareira.

Como você avalia as ações adotadas pela Sabesp e o governo neste momento de crise?
Elas são mínimas, paliativas. Foi feita a manutenção da água disponível, o uso do volume morto e algumas campanhas de publicidade. Não vi nenhuma ação de longo prazo pensando nas perspectivas de uma distribuição mais eficiente e na recuperação de áreas degradadas. Não dá para ficarmos rezando todo ano para chover. Essas ações deveriam ter sido implementadas lá atrás. A gente começou a falar em rodízio de água e consumo consciente apenas quando chegamos a um estado avançado de escassez.

E até que ponto as condições climáticas contribuíram para o atual quadro?
As mudanças climáticas também foram um fator importante, mas não foram o mais importante.

Arquivo Pessoal
Micheli Kowalczuk Machado
Micheli Kowalczuk Machado é autora de estudo da USP sobre a governança do sistema Cantareira

Na sua pesquisa, a palavra "diálogo" é muito recorrente. Onde faltou diálogo na gestão do Cantareira?
Existem alguns instrumentos que permitem a participação da sociedade civil, como os conselhos das unidades de conservação. É preciso pensar em ações que mobilizem as pessoas, porque a população nem sabe que essas ferramentas existem. Esses organismos reúnem pessoas com conhecimento científico e técnico, mas não envolvem a comunidade, que tem o conhecimento do cotidiano, da vivência. Será que isso não é tão importante quanto o conhecimento de um especialista? Saber só um aspecto do problema não é suficiente para resolver algo tão complexo.

A crise hídrica em São Paulo veio para ficar ou ainda poderemos recuperar o quadro de alguns anos atrás?
A gente não vai acordar em um dia e estar com a mesma situação de 30 anos atrás, porque o problema não se resume à falta de água. Tem uma série de ecossistemas que foram afetados e isso demora muito para se recuperar. Podemos até conseguir voltar à realidade de dois ou três anos atrás, mas isso também não é uma situação de conforto. Precisamos de uma mudança de visão.

Existe alguma situação semelhante à do Cantareira em que as medidas corretas foram adotadas?
Com todo esse contexto, eu desconheço. Foi falado no caso do Japão, que teve um problema de gestão hídrica e as autoridades lidaram melhor com essa questão. O enfoque lá foi ampliar a eficiência na distribuição, mas é uma realidade bem diferente do Brasil, com outra realidade histórica e outras pessoas envolvidas. A gente tem um pensamento –que está mudando–, de que a água é um recurso infinito e abundante aqui. Temos que parar com isso. A gente aprende na escola que a água é um recurso natural renovável, mas talvez seja a hora de repensar se é mesmo correto afirmar que seja algo renovável.

A escassez atual é uma particularidade nossa ou é algo que deve começar a afetar mais regiões?
A falta de água é uma realidade global que a gente tem que aprender a conviver. Essa situação já acontece em lugares do mundo inteiro, com milhares de pessoas precisando se mudar por causa da seca e de outras consequências das mudanças climáticas. As instituições (governos, população e empresas) precisam estar conscientes de que a gente tem uma mudança ambiental interferindo diretamente no nosso modo de vida e pensar em programas de ação que já considerem essa nova realidade.

Intervenções como a transposição do rio São Francisco e a construção da usina de Belo Monte podem ter consequências negativas nesse sentido?
Acho que sim, porque essas obras não mudam apenas o trajeto de um rio. Mudam toda a dinâmica dele. Uma das consequências disso pode ser o prejuízo a outras regiões. Propostas como a transposição do rio Paraíba do Sul podem trazer grande risco, pois trata-se de uma bacia que já tem seus próprios problemas de abastecimento. A gente resolve em um lugar e pode causar um grande dano em outro.


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