Folha de S. Paulo


Estudantes travestis adotam novo nome em escolas estaduais de SP

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"Ah, eu falo mesmo!", ela reclama, apontando para a lista de chamada. Nela, pode-se ler: "Patrícia Borges da Silva". Até aí tudo bem. O que vem depois, no entanto, não a agrada tanto.

Trata-se de um nome masculino e a explicação que ela deve ser chamada de Patrícia, de acordo com resolução que assegura aos transexuais e travestis o direito de serem chamados pelo "nome social" (nome escolhido de acordo com a identidade de gênero) dentro da escola.

Aos 24 anos, a aluna do 3º ano do EJA (Educação de Jovens e Adultos) na Vila Mariana, zona sul de SP, tem certeza que a explicação não é necessária. Basta o nome que escolheu e pronto.

Ela está certa. Patrícia é uma dos 369 estudantes da rede pública estadual paulista que se inscreveram para adotar o nome social. Mais: ela é um dos 44 que conseguiram -13 deles têm menos de 18 anos e precisaram da autorização dos pais.

A possibilidade de serem chamados na escola segundo sua identidade de gênero foi aberta apenas em 2014. As situações que não resultaram na adoção do nome social se deveram a: incompreensão do conceito (pedidos de apelidos, por exemplo), preenchimento errado ou incompleto da ficha e falta da assinatura dos pais, no caso dos menores de idade.

Segundo Andrea Grecco, diretora de Planejamento, Gestão e Matrícula da Secretaria de Estado da Educação, erros de preenchimento no formulário e a falta de autorização dos pais -para os menores de 18 anos- impediram esse número de ser maior.

De acordo com a resolução, o nome civil do aluno aparecerá apenas em documentos como declarações, histórico escolar e diploma. Na lista de chamada, bem como em todas as atividades escolares, o que vale é o nome escolhido.

Marlene Bergamo/Folhapress
A estudante Patrícia Borges da Silva
A estudante Patrícia Borges da Silva

CONQUISTA

Cabelos negros escorrendo pelos ombros, maquiagem discreta, batom rosa claro, bolero branco, óculos de grau e unhas vermelhas compridas, Patrícia se equilibra no sapato de salto alto: "É uma conquista. Mas antes mesmo, quando voltei a estudar em outra escola, deixei claro como queria ser chamada."

Longe de ser um capricho, a condição de "ser Patrícia" também dentro da sala de aula foi fundamental para que ela voltasse à escola, abandonada aos 13 anos quando foi colocada para fora de casa.

"Saí de casa e uma amiga me acolheu, mas não tinha oportunidade de estudar."

Dessa época, ela guarda lembranças que nem sempre compartilha, como o "trabalho na noite". "É uma consequência da vida. Não vou dizer nem que sim, nem que não, deixa uma incógnita."

Agora, ela diz que sonha em ser advogada, mas também vai considerar a enfermagem na hora de se inscrever em uma faculdade.

DIRETORA

O caminho que Patrícia retomou é o mesmo que Paula Beatriz de Souza Cruz, 44, tratou de nunca se descuidar. Apaixonada por educação, cursou magistério, letras e pedagogia. Na rede estadual desde 1989, já foi professor e diretor de escola -assim mesmo, no masculino- antes de se tornar diretora, com "a" no final.

Nascida e criada no Campo Limpo, dirigiu a escola estadual Santa Rosa de Lima, no mesmo bairro da zona sul, em 2005. Saiu para assumir outras funções e retornou em 2013, já como Paula -identidade assumida em 2007.

Ali, ela comanda a vida escolar de 1.100 alunos do 1º ao 5º ano do ensino fundamental. A diretora, que diz nunca ter sofrido preconceito, sabe que é uma exceção.

"Sofri mesmo na escola quando era aluna no antigo primário. Lá eu sofri. Até remédio me deram para, supostamente, 'virar homem'", diz.

E se a possibilidade de adotar o nome social tivesse surgido antes? "Talvez a Paula tivesse aparecido antes também, lá por 1988 ou 1989", conta a diretora, que diz se surpreender com ex-alunos e meninas do bairro que a procuram para se aconselhar.

Em todos os casos, o conselho mais importante é o mesmo: continuar na escola.

Em tempo: a lista de presença com o nome de Patrícia foi corrigida e o nome masculino e a explicação burocrática retirados.

Não há uma lei federal que obrigue os Estados a adotarem a possibilidade do nome social nas escolas, apenas um parecer técnico favorável. Também não há uma estimativa de quantos Estados já o adotaram, segundo o MEC.

Marlene Bergamo/Folhapress
A diretora Paula Beatriz de Souza Cruz
A diretora Paula Beatriz de Souza Cruz

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