Folha de S. Paulo


Preso, ex-comandante de UPP diz que o tráfico armou sumiço de Amarildo

Para o Ministério Público e a Polícia Civil do Rio, não há dúvida sobre quem matou o ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, 43: foram os PMs da UPP da Rocinha, liderados pelo major Edson dos Santos, que o levaram para averiguação no dia 14 de julho de 2013 e o teriam torturado até a morte e sumido com seu corpo depois.

Na versão do então comandante da UPP, no entanto, o que aconteceu na maior favela do Brasil, na zona sul do Rio, foi um plano dos traficantes para enfraquecer a Unidade de Polícia Pacificadora.

Em entrevista exclusiva à Folha, dentro do presídio da PM, o Batalhão Especial Prisional (Bep), em Benfica, zona norte carioca, o major Edson, 40, diz ser inocente.

Vendo aproximar-se seu julgamento no Tribunal de Justiça do Rio, que deve ocorrer até março, sua defesa pretende apresentar novas evidências que, segundo eles, foram ignoradas pelos policiais que investigaram o crime e pelo Ministério Público.

Ricardo Borges/Folhapress
O major Edson dos Santos, que está preso e espera julgamento
O major Edson dos Santos, que está preso e espera julgamento

O próprio major mostrou à Folha imagens de câmeras de monitoramento da Rocinha que mostra o policial Reinaldo Gonçalves, acusado de participação direta no crime, em outros locais da favela no momento da suposta tortura do ajudante de pedreiro. A comunidade possui um total de 84 câmeras –instaladas pelo próprio major.

No entanto, o secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, diz que não mudou de opinião sobre o caso.

Nascido e criado na favela de Vigário Geral, na zona norte carioca, Santos é formado em direito, tem pós-graduação em gestão pública e coordenou cursos no Bope (Batalhão de Operações Especiais). Foi ainda coordenador da barreira fiscal da operação Lei Seca e depois assumiu o comando da UPP Rocinha.

Preso há mais de um ano sob acusação de tortura e ocultação do corpo de Amarildo, o major estuda para o Enem no cárcere, com o objetivo de cursar engenharia civil.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

*

Folha - Onde está o Amarildo?
Major Edson Santos - Tenho a convicção de que ele esteja morto. Onde ele está, você tem que fazer essa pergunta ao tráfico da Rocinha. E, hoje em dia, é fácil fazer essa pergunta ao tráfico. Quando eu estava lá, eu corria pelos becos de pistola. Agora, equipes de jornalistas estão sendo expulsas. Então, é fácil perguntar. Só entrar na Rocinha que você irá encontrar traficante armado de fuzil.

O sr. afirma que Amarildo foi morto por traficantes. Por quê? O que aconteceu?
Acho que traficantes o pegaram. Tínhamos prendido 48 pessoas ligadas ao tráfico na operação Paz Armada e há muito tempo os traficantes queriam saber quem era o informante do [soldado] Vital. Ao verem o Amarildo com ele acharam que fosse o informante, mas não era. Suponho que tenham pego ele na trilha que corta a escadaria da Dionéia [em frente à sede da UPP].

Por que o Amarildo foi conduzido para a UPP?
O soldado Vital disse que a informante denunciou que tinha armas em um bar e eu autorizei a equipe a ir ao local. Na Paz Armada só tinha foto e vulgo [apelido], não nomes. Os policiais acharam Amarildo parecido com um dos suspeitos procurados e o levaram para checagem na sede da UPP porque a lista dos mandados de prisão estava comigo.

Quanto tempo Amarildo ficou na sede da UPP?
O tempo de conferir a carteira de trabalho que ele apresentou como identificação e ser liberado. Depois, ele pegou a escada da Dionéia, única saída além do portão vermelho [entrada principal da UPP].

Havia quatro câmeras no entorno da UPP, sendo três nessa escada. Duas queimaram justamente no dia do sumiço do morador. Como o sr. explica isso?
A Rocinha tem 80 câmeras. Quem fez o croqui dos locais onde elas ficariam fui eu. Chovia e duas câmeras queimaram. Um técnico da empresa responsável [Emive] provou em juízo [convocado pela defesa] que foi por causa de um pico de luz, às três da tarde. Outras duas continuaram a funcionar: a do portão e a do final da escada. A viatura que estava com o Amarildo passa pelo portão. Após liberado, ele pega a escada. Então, eu te pergunto: tem muro ao lado da escada? Não, tem trilhas. Aquelas trilhas são usadas o tempo todo. O que a DH [Delegacia de Homicídios] não fala: durante o tempo da suposta tortura pelo menos 50 pessoas passaram pelo portão vermelho e não voltaram. Somente 12 pessoas são flagradas pela câmera no final da escada. Então, seguindo a lógica da DH, nós sumimos com quase 50 pessoas, não só com o Amarildo.

Duas testemunhas disseram que não havia tráfico perto da UPP. Como os traficantes o teriam sequestrado sem ninguém ver?
Um relatório do Disque-Denúncia, que está nos autos, aponta que a mata ao redor da UPP é um dos pontos do tráfico. Outro relatório, da inteligência da PM, feito em 2012, fez o próprio Beltrame [José Mariano Beltrame, secretário de Segurança do Rio] me ligar, preocupado. O documento diz que uma mulher chamada Niura, do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, se aproximou do traficante Antonio Bonfim Lopes, o Nem. Após a prisão dele, em 2011, ela teria articulado com outros criminosos ações contrárias à presença da polícia. Niura se reuniu com pessoas da associação de moradores, liderada por Léo, para promover ações que resultassem na minha saída. O grupo chegou a planejar atirar contra crianças ou mulheres para desestabilizar o comando.

O sr. nega que tenha havido tortura na UPP? E os depoimentos dos quatro policiais que disseram ter ouvido gritos na unidade?
O depoimento do soldado Jardim [Alan Jardim] é mentira. Ele diz que quatro [PMs] participaram da tortura, entre 19h20 e 20h. Nesse período, porém, dois dos ditos torturadores aparecem em imagens de câmeras em outros pontos da Rocinha. Ele [Jardim] disse que, no dia seguinte, viu gotas de sangue em um balde com água, mas o mecânico da UPP depôs dizendo que as gotas eram óleo de fluido de direção, que é vermelho.

E as duas policiais também teriam mentido?
Houve coação na DH e elas admitiram isso em juízo. Uma recém-casada, outra noiva e outra com filho de dois anos. Não tenho dúvida de que elas mentiram para evitar a prisão.

Dois laudos de voz comprovam que um policial se passou por traficante para assumir a morte de Amarildo. Por que houve essa fraude?
Não houve fraude. Há outros dois laudos que dizem que não é a voz do PM acusado. A defesa fez um laudo com uma perita, que já foi do Ministério Público, que diz: 'Não há tempo suficiente para que se diga que a voz é dele'. O Instituto de Criminalística Carlos Éboli (ICCE) diz o mesmo. Aí, incrível: o Ministério Público aceita um laudo da PM, que nunca fez laudo antes, concordando com o primeiro laudo feito pelo Ministério Público. E o ICCE? Não tem condições técnicas para fazer? Então, vários processos devem ser anulados.

O Ministério Público diz que o sr. corrompeu duas testemunhas para acusarem o tráfico da suposta morte do Amarildo. O que o senhor diz disso?
Me acusaram de corromper a Lúcia [testemunha], que era nossa informante. Quando o filho dela [Jeferson] é baleado ao fugir da polícia sacando uma arma, fica sob custódia no hospital. Então, a Lúcia é expulsa da Rocinha por traficantes. Eles teriam dito a ela que, se voltasse, ela teria o mesmo fim que deram ao Amarildo. Pedi para ela ir depor, mas, como estava sem roupas, não queria. Então, comprei um vestido para ela depor. Também dei fraldas para o paciente que dividia o quarto com o Jeferson [outra testemunha] no hospital porque ele me pediu.

O sr. alega ser inocente da acusação de tortura seguida de morte de Amarildo?
Estou há 1 ano e 2 meses preso e eu tenho a convicção de que não fiz nada. O próprio secretário de Segurança [Beltrame] escreveu um livro, lançado em 2014, após a minha prisão, dizendo que o Amarildo foi morto 'ou pelo tráfico ou por uma banda podre da PM'. Calma aí. Como é que ele diz 'ou'? A Divisão de Homicídios, que é subordinada a ele, investigou e disse que fomos nós. Mas ele mesmo duvida dessa investigação.

Acredita que possa ser absolvido?
Eu perdi a fé. Agradeço a Deus por tudo que ele me deu até hoje, mas não espero mais nada. Se não comprovar minha inocência agora, em alguma hora sei que serei absolvido.


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