Folha de S. Paulo


Rituais, orações, oferendas e pajelança são feitos para 'chamar' a chuva em SP

Se a fé move montanhas, quem sabe ela também possa dar uma mão e trazer mais nuvens para bem perto de São Paulo. Num país sincrético como o Brasil, vale tudo para atrair água lá do céu: de bonequinhas-sereias a penachos, de gnomos a orixás, de tambores a danças indígenas.

Em tempos secos, não há limites para a pajelança.

Atrás da área usada para a sauna sagrada "temaskal" –cerimônia tradicional dos povos indígenas para regressar ao "útero da Mãe Terra"–, dá para ouvir o canto dos pássaros e o som da correnteza.

De repente, uma "vibe" toma conta daquela atmosfera: o cearense de Ipu Nei Ribeiro Alves, 43, nome de batismo do xamã Sthan Xanniã Tehuantepelt ("águia dourada que canta por entre montanhas"), bate forte o tambor.

Em apache, seu cântico soa como um profundo lamento num mundo em que o homem se afasta da natureza.

"Esta crise hídrica irá perpetuar esse universo de exclusão tão evidente em São Paulo, onde só quem tem dinheiro terá direito à água", diz ele. "Não é contraditório que uma cidade que cresceu sobre rios, matas, charcos e mananciais esteja diante de um dilema dessa proporção?"

Xanniã lidera o núcleo Aos Filhos da Terra, centro de práticas e ensinamentos místicos, que agrega líderes espirituais e xamãs com pajelanças, sacudimentos, rezas, curas e outros tipos de cerimônia como meio de integração com a natureza. Em uma área de 90.000 m², o centro se situa numa região ainda cercada de verde nos extremos de Cotia, na Grande São Paulo.

Ao clarear deste domingo (9), um grupo com cerca de cem pessoas, entre xamãs mexicanos e brasileiros e discípulos munidos de maraca e tambor, vai dançar e cantar. E, é claro, rezar muito, inclusive em nome da chuva.

Karime Xavier/Folhapress
Com crise hídrica, rituais, orações, oferendas e pajelança são feitos para 'chamar' a chuva em SP
Com crise hídrica, rituais, orações, oferendas e pajelança são feitos para 'chamar' a chuva em SP

Para Xanniã, a água representa as "artérias da mãe terra". Ele conta que, há dois anos, xamãs do México, da Bolívia, do Equador e do Brasil vêm rezando pela água, cuja escassez, diz o xamã, "já era previsível por causa da falta de consciência".

"Quem não respeita o outro, quem joga lixo na rua e nos rios ou derruba árvore, não vai respeitar a natureza", afirma, enquanto se vira para seu altar. Nele se misturam cocar, totem, imagem de Buda, de São Francisco de Assis, de Laxmi (deusa hindu).

"Nossa fé reverencia todas as etnias. Não precisa ser religioso para respeitar a vida."

Sobre a peleja insistente das orações voltadas para o céu, Xanniã é enfático: "Não quero desanimar, mas as chuvas desta semana não foram suficientes para nos saciar".

A depender do xamã e seus seguidores, rezas em nome da água devem continuar.

SANTOS, FADAS E ORIXÁS

Há quem reze também para não cair uma gota. Com um longo histórico de previsões meteorológicas para eventos como Rock in Rio ou festa de Réveillon, a Fundação Cacique Cobra Coral foi criada para intervir nos desequilíbrios provocados pelo homem na natureza. Sua presidente, a médium Adelaide Scritori, diz incorporar o cacique que empresta o nome à entidade –segundo ela, um espírito capaz de influenciar o clima.

Às vezes, no entanto, até a fé falha. Em setembro, três missas foram celebradas na Catedral de Ribeirão Preto (SP), para trazer água do céu. A chuva, porém, não veio.

"Não estamos preservando a vida, que é regida pela água", diz Nicia Iodice Altermann, 56, sacerdotisa ialorixá Mameto N'kisi do Omoloko, crença de matriz africana que cultua orixás. Os rituais dessa casa aceitam o esoterismo, por onde transitam fadas, bruxas e gnomos.

"Falta-nos cultuar e preservar a natureza, assim como fazem as orixás femininas das águas", diz ela, que mantém um pote com água para "chamar" chuva em frente ao seu "ilê-templo", na zona oeste de São Paulo. "Como a água benta nas igrejas", compara.

A sacerdotisa defende a união de todas as crenças e manifestações espiritualistas em prol da água. "Todos nós temos um pezinho no espiritual. Na virada do ano, quem não pula ondinhas ou joga flores ao mar? Então, não custa nada a gente rezar, né?"


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