Folha de S. Paulo


Repórter da Folha troca o transporte público pela bicicleta por uma semana

As ruas do centro de São Paulo estão cheias na noite amena de sexta-feira, 17 de outubro. Enquanto executivos lotam os bares no happy hour e famílias decidem se pedirão pizza ou jantarão fora, estou a quatro quilômetros de casa, sentado no chão de um posto de combustível, com as mãos sujas de borracha, tentando encher um pneu que teima em esvaziar.

Sem jamais ter sido ciclista, sedentário há anos e com pressa de chegar em casa depois de mais um dia de trabalho, estou quase arrependido do desafio que a Folha me propôs: usar a bicicleta como meio de transporte durante uma semana na cidade.

Na prática, isso consistiu em idas e voltas entre a Bela Vista, onde vivo, e Campos Elíseos, onde fica a sede do jornal, ambos bairros da região central, com uma bicicleta com quatro anos de (não) uso, encostada faz tempo em minha garagem.

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Com 155 km de ciclovias até o último dia 20, 60% feitas na gestão do atual prefeito Fernando Haddad (PT), São Paulo tenta incentivar o uso da bike por quem não suporta ficar no trânsito paulistano, dentro do carro, em engarrafamentos intermináveis e/ou pelos dispostos a adotar um estilo de vida mais saudável.

Não sou bem o público-alvo; saio para o serviço por volta de 11h, fora do rush. Como não tenho carro (minha mulher, sim), vou de ônibus, pela avenida Paulista e pela rua da Consolação, em um trajeto de 35 minutos, de porta a porta, em que aproveito para ler notícias –as sérias e as nem tanto– no celular.

De volta ao posto de combustível, constato que o pneu da bicicleta furou. Uma vez que, às 21h, não encontrarei uma oficina de bicicletas aberta no entorno, considero deixar a bicicleta na Folha e voltar de táxi para casa.

Para não quebrar o desafio, tomo a decisão mais difícil: ir a pé, empurrando a bicicleta, até encontrar uma borracharia no caminho. Acho três. As duas primeiras recusam o conserto; a prioridade, dizem, são os carros, que pagam mais. Faz sentido.

O último borracheiro topou colar a câmara furada. Duas horas depois, chego em casa, enfim –suado e imundo. Ufa.

DESÂNIMO

Ter um pneu furado era a menor das minhas preocupações na madrugada de quarta-feira, 15 de outubro, o primeiro dia como biker.

Meu temor era obedecer à regra número um do ciclista urbano: ocupar a faixa da rua tal qual um automóvel.

Dois dias antes eu estava feliz e seguro na condição de usuário-de-transporte-público-fora-do-rush e, agora, me via ante a possibilidade de ser fechado, xingado no trânsito ou, toc-toc- toc, atropelado.

Dados sobre atropelamentos de ciclistas em São Paulo não são tão conhecidos. Lembramos só dos casos mais notórios, como o do rapaz que perdeu o braço ao ser pego por um carro na Paulista, no ano passado.

Segundo a CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) 706 ciclistas ficaram feridos em acidentes de trânsito em 2013. Morrer não é tão comum –35 ciclistas foram vítimas, um a cada dez dias, índice mais baixo desde 2005.

Por medo dos carros, evito as avenidas mais movimentadas. Deixo de lado Paulista e Consolação, rota do ônibus, e escolho uma mais calma, pelo Bixiga, onde os carros circulam devagar; são quatro quilômetros, um em ciclovia.

ÂNIMO

No primeiro dia, assim como em todos os demais, nada do que projetava de pior ocorreu. Andar entre os carros é desconfortável, mas não necessariamente arriscado. Ruim mesmo foi encarar as subidas –em várias, fui a pé.

"Invadir" a rua de bicicleta foi como demarcar território; ao ocupar a via, tal qual um carro, passei a ser tratado feito um –e foi bom.

Diferentemente do que imaginava, não fui desrespeitado nem fechado. Motoristas atrás da minha bike respeitaram o ritmo (lento) de ciclista novato. E, quando percebi que estavam mais velozes, os deixei passar –ou, sem fôlego para pedalar, encostei em alguma calçada.

Mas qualquer manobra de carro sem sinalização, como esquecer da seta, representa risco potencial para a bike.

Noto também que pedestres não estão acostumados às ciclovias. Vi muitos distraídos, ou gente que, como eu ou você, já atravessou fora da faixa de pedestres e só presta atenção nos carros.

DESÂNIMO

A vida sob a perspectiva do ciclista inclui ainda vias mal iluminadas, como a rua Santo Antônio, no Bixiga, o que torna a bicicleta difícil de ser vista. (Refletores dianteiro e traseiro são obrigatórios pela lei de trânsito, mais retrovisor esquerdo e buzina; o pacote custa cerca de R$ 120).

No geral, encontrei ciclovias bem sinalizadas, com uma exceção: o cruzamento do largo do Arouche com a avenida São João, no centro.

O traçado da ciclovia no chão faz o ciclista ser fechado pelos carros que entram na São João, sempre.

A CET disse que elabora um novo projeto para o cruzamento e que, por ora, orienta os ciclistas a atravessarem a via na faixa de pedestres, desmontados da bicicleta.

Fora a viagem em si, ir de bicicleta ao trabalho impõe preocupações inexistentes ao usar carro, ônibus ou metrô –ter onde tomar banho e se trocar, por exemplo.

Nem toda empresa tem bicicletário; no jornal, há, embora o vestiário eu só tenha descoberto no terceiro dia, graças a um colega biker.

Como se vestir é outro ponto. Nos dias quentes, pedalo de bermuda, o que significa, para meu constrangimento, entrar na Folha com as pernas à mostra e arriscar topar com o chefe ou com os chefes do chefe –o que aconteceu.

ÂNIMO

Passados os sete dias do desafio, continuo a ir e vir de bike, esperançoso de, quem sabe, perder a barriga e ter uma vida algo saudável.

O que me anima: a bike me permite atividade física diária, o que nunca faria, por falta de tempo e de disposição.

Também tem sido mais rápido que o ônibus; de bike, são 25 minutos, ida ou volta.

Só não empolgo de vez porque conheço bem meu padrão de comportamento, de me entusiasmar e depois desistir na mesma velocidade. Convém cautela, pois.

Isso posto, concluo que é possível a qualquer um que viva na região central trocar o carro pela bike –ao menos em alguns dias da semana. Se eu consegui, você consegue.


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