Folha de S. Paulo


Com oficinas e teatro, artistas dividem espaço com pacientes psiquiátricos

"Isto aqui é um campo de concentração em fim de festa", diz o médico Vitor Pordeus, 34, enquanto caminha pelos corredores dos andares desativados do hospital psiquiátrico Instituto Municipal Nise da Silveira, no Rio.

Nesses andares, enfermarias deram lugar ao Hotel da Loucura, um espaço de tratamento dos pacientes através da arte e do teatro. São 12 quartos, 24 baias e um total de mais de 2.000 metros quadrados. Suas paredes foram pintadas do chão ao teto por sete coletivos de artistas que fincam os pés lá desde 2012.

A convite de Pordeus, idealizador do hotel e coordenador do Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, eles realizam oficinas, exposições e eventos que reúnem artistas, visitantes e pacientes.

Ainda vivem 98 pessoas no instituto, mas esse número já foi de milhares. Aos poucos os pacientes são encaminhados para Caps (Centro de Atenção Psicossocial), onde recebem tratamento e têm liberdade para circular. Ou vão para residências terapêuticas, nos casos mais graves.

"Seja bem vinda. Por todos os lugares onde você passar, lembre que foram enfermarias onde houve mortes, choque elétrico, camisa de força, lobotomia", afirma o funcionário Paulo Weber.

Circulam pelo Hotel pacientes com variados graus de doença mental. Marcos (nome fictício) tem psicose crônica e dificuldade de se expressar verbalmente. "Ele tem tido uma evolução impressionante por causa da convivência com os artistas.

Desenvolve relações, faz massagem. Daqui a um tempo mais substancial vai estar em outra condição", diz Pordeus.

Já Nilo Sérgio, que tem transtorno psicossocial, mora em casa, tem liberdade para circular e escreve poemas e canções.

"Quando conheci o hotel, pensei 'Isto aqui é 1968! Eu cresci com o hálito de 1968, mas sou da geração rock and roll dos anos 1980'."

Borrar as fronteiras entre arte e loucura é tradição nesse lugar. A psiquiatra alagoana Nise da Silveira introduziu ali a terapia ocupacional como forma de tratamento dos esquizofrênicos em 1946.

Em vez de choque elétrico, pintura, que ela lia como imagens do inconsciente. Para abrigar as obras dos pacientes foi criado o Museu de Imagens do Inconsciente, que funciona desde 1952.

Dois desses artistas, Raphael Domingues (1912-1979) e Emygdio de Barros (1895-1986), tiveram suas pinturas expostas no Instituto Moreira Salles em 2013 e encantaram os críticos. Para os artistas, a convivência com os pacientes é o ponto forte da experiência no hotel.

"Uma vez, apareceu um homem que passava por períodos difíceis. Depois de cantar o Hino da Bandeira, pediu que pegassem o violão. Ficamos sem saber como agir. Quando posicionou o violão já era possível ver que ele sabia tocar. A primeira coisa foi Bach", conta Carlos Meijueiro, do coletivo Norte Comum.

Além da convivência com os pacientes, para os artistas há também a vantagem de ter uma sede numa cidade com aluguéis cada vez mais caros.

A atividade mais rotineira do hotel são as oficinas de teatro que Pordeus, que também é ator, realiza com os pacientes. Segundo ele, o teatro os torna menos agressivos.

Elas não são muito diferentes de uma aula de teatro para os sãos. Num círculo, os pacientes cantam e dançam enquanto Pordeus age como o maestro no meio da roda.

Às quartas-feiras, a trupe apresenta o espetáculo-oficina "Loucura sim, mas tem seu método", inspirado em Hamlet, de Shakespeare.

"Os psicóticos crônicos vivem sem nenhum estímulo, apenas drogas. A convivência, que está na essência do teatro, lhes permite comunicar coisas que antes eram impossíveis. Nise dizia que a coisa mais importante é o afeto. O afeto traz o psicótico de volta", diz o médico.


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