Folha de S. Paulo


Estrangeiros que cumprem pena em liberdade vivem clandestinos

A cabeleireira cabo-verdiana Ester Sequeira, 38, vive há um ano e seis meses com o filho de dois anos num abrigo na capital paulista sem documentação.

Condenada a cinco anos e dez meses por tráfico internacional de drogas, ela responde em liberdade, mas não tem acesso a trabalho formal, saúde e educação.

Assim como Ester, estrangeiros condenados no país que cumprem a pena em liberdade vivem de forma clandestina. A Folha levantou ao menos 135 casos nessa situação em São Paulo.

O Estado possui 2.088 presos estrangeiros (79% por tráfico) -os únicos dados atualizados, pois os do governo federal referentes ao país (3.191) são de junho de 2013.

O estrangeiro condenado deve ficar no país até terminar sua pena, mas seu passaporte fica retido.

Por ter cometido crime, o Estatuto do Estrangeiro, que será revisto pelo governo federal, impede que ele tire documentos e tenha autorização para trabalhar enquanto cumpre a pena em liberdade ou aguarda, fora da prisão, a expulsão após cumprir toda a sentença.

Para resolver a questão, o Conselho Nacional de Imigração, vinculado ao Ministério do Trabalho, publicou em abril resolução dando direito a trabalho e documentos provisórios aos estrangeiros condenados.

Até agora, no entanto, os pedidos de documentação não foram respondidos.

Procurado, o Ministério da Justiça confirmou à Folha que "nenhum preso foi beneficiado pela resolução" e publicará uma portaria para garantir a efetivação da medida. Isso deve ocorrer no início de setembro.

Raquel Cunha/Folhapress
A cabo-verdianha Ester Sequeira, 38, foi condenada por tráfico internacional de drogas e responde em liberdade sem documentação
A cabo-verdianha Ester Sequeira, 38, foi condenada por tráfico internacional de drogas e responde em liberdade sem documentação

'MESMA COISA'

"Me arrependo profundamente do que eu fiz e quero reconstruir minha vida, mas não consigo fazer nada sem documento. É a mesma coisa que estar presa", diz Ester.

Ela foi detida em 2011 em Cumbica, grávida de sete meses, transportando por meio de uma cinta nas pernas 1,6 kg de cocaína. "Num momento de dificuldade, me ofereceram R$ 20 mil para pegar a droga e levar para Gana. O dinheiro me ajudaria a montar meu salão", diz.

Ester faz bicos de limpeza num hotel e ganha R$ 700 -R$ 300 são para pagar uma babá, pois o filho não foi aceito na creche por não ter CPF.

"Quando se deixa esses estrangeiros marginalizados, sem documentação, a maioria nem fala português, corre-se o risco de situação de rua, sem que eles consigam se emancipar", diz Isabel Machado, da Defensoria Pública da União.

"[As 'mulas do tráfico'] São recrutadas pela vulnerabilidade social e ao ficarem nessa situação podem ser aliciadas para o trabalho escravo ou cair na rede do tráfico de novo", afirma Michael Nolan, presidente do ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania), que presta assistência as presas estrangeiras.

A falta de documentos dificulta também a obtenção de liberdade provisória ou a progressão de pena (do regime fechado para o semiaberto, por exemplo).

"Muitos respondem ao processo integralmente presos, mesmo que sejam réus primários ou a conduta não tenha periculosidade", diz a defensora.

Danilo Verpa/Folhapress
A sul-africana Michelle Barandas, 41, terminou de cumprir sua pena por tráfico em fevereiro e vive sem documentação
A sul-africana Michelle Barandas, 41, terminou de cumprir sua pena por tráfico em fevereiro e vive sem documentação

EGRESSOS DA PRISÃO

A emissão de documentos provisórios também beneficiaria casos como o da sul-africana Michelle Barandas, 41, que em fevereiro deixou a prisão após cumprir toda a pena por tráfico internacional de 1 kg de cocaína.

Como não tem filho e marido brasileiros, ela deveria ser mandada de volta a seu país pela Polícia Federal, diz a lei. Mas continua em São Paulo sobrevivendo com a ajuda da Associação Palotina, instituição ligada a Igreja Católica que acolhe mulheres estrangeiras egressas do sistema prisional e refugiadas.

Seu passaporte está retido no processo judicial, o inquérito de expulsão ainda não foi concluído pela Polícia Federal e o único documento que carrega é o alvará de soltura.

"O delegado da PF disse que vai levar dois anos para eu ser expulsa. Como vou viver sem documento?", diz ela, que morava nas ruas de Joanesburgo quando "aceitou por desespero" ganhar R$ 5.000 sendo mula do tráfico.

Editoria de Arte/Folhapress

Desde 2013, 1.497 estrangeiros deixaram as prisões do Estado após cumprirem toda a pena, conforme o governo paulista. A Polícia Federal diz que expulsou 402 pessoas nesse período. A Folha questionou a PF sobre a situação dos outros 1.095, se foram expulsos ou não, mas não obteve resposta.

Segundo a Defensoria, se tiverem condição financeira, eles podem partir por conta própria sem esperar a expulsão via Polícia Federal. Para isso, os defensores vem trabalhando para que os passaportes não fiquem retidos nos processos judiciais.

Sobre a demora no andamento das expulsões, o Ministério da Justiça diz que precisa "informatizar o sistema e realizar concurso público para dar um tratamento mais célere aos processos".

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