Folha de S. Paulo


'Não quero que a morte seja súbita', escreveu Rubem Alves à Folha; leia

O escritor e educador Rubem Alves morreu neste sábado (19), aos 80 anos, vítima de falência múltipla de órgãos, aos 80 anos. Em uma de suas últimas colunas na Folha, publicada em 18 de outubro de 2011, escreveu sobre a morte e afirmou que não gostaria que ela fosse repentina.

O escritor foi vítima de falência múltipla de órgãos. Ele estava internado na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) do Hospital Centro Médico de Campinas (a 93 km de São Paulo).

Rubem Alves foi internado no último dia 10 com um quadro de insuficiência respiratória, devido a uma pneumonia. Segundo boletim médico, ele tinha apresentado agravamento das funções renais e pulmonares na sexta (18).

A página oficial do escritor no Facebook informa que o velório será realizado no Plenário da Câmara Municipal de Campinas, a partir das 19h deste sábado.

Alves foi colunista da Folha em três oportunidades: entre 1982 e 1985, escreveu para o caderno "Educação e Ciência"; entre 2002 e 2005, para "Sinapse"; e entre 2005 e 2011, para "Cotidiano". Leia abaixo a coluna intitulada "Sobre o Morrer".

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SOBRE O MORRER

"Ninguém quer morrer. Mesmo as pessoas que querem chegar ao paraíso. Mas a morte é o destino de todos nós." (Steve Jobs)

Odeio a ideia de morte repentina, embora todos achem que é a melhor. Discordo. Tremo ao pensar que o jaguar negro possa estar à espreita na próxima esquina. Não quero que seja súbita. Quero tempo para escrever o meu haikai.

Mallarmé tinha o sonho de escrever um livro com uma palavra só. Achei-o louco. Depois compreendi. Para escrever um livro assim, de uma palavra só, seria preciso ter-se tornado sábio, infinitamente sábio. Tão sábio que soubesse qual é a última palavra, aquela que permanece solitária depois que todas as outras se calaram. Mas isso é coisa que só a Morte ensina. Mallarmé certamente era seu discípulo.

O último haikai é isto: o esforço supremo para dizer a beleza simples da vida que se vai. Tenho terror de ser enganado. Se estiver para morrer, que me digam. Se me disserem que ainda me restam dez anos, continuarei a ser tolo, mosca agitada na teia das medíocres, mesquinhas rotinas do cotidiano. Mas se só me restam seis meses, então tudo se torna repentinamente puro e luminoso. Os não essenciais se despregam do corpo, como escamas inúteis.

A Morte me informa sobre o que realmente importa. Me daria ao luxo de escolher as pessoas com quem conversar. E poderia ficar em silêncio, se o desejasse. Perante a morte tudo é desculpável... Creio que não mais leria prosa. Com algumas exceções: Nietzsche, Camus, Guimarães Rosa. Todos eles foram aprendizes da mesma mestra. E certo que não perderia um segundo com filosofia. E me dedicaria à poesia com uma volúpia que até hoje não me permiti. Porque a poesia pertence ao clima de verdade e encanto que a Morte instaura. E ouviria mais Bach e Beethoven. Além de usar meu tempo no prazer de cuidar do meu jardim...

Curioso que a Morte nada tenha a dizer sobre si mesma. Quem sabe sobre a Morte são os vivos. A Morte, ao contrário, só fala sobre a Vida, e depois do seu olhar tudo fica com aquele ar de "ausência que se demora, uma despedida pronta a cumprir-se" (Cecília Meireles). E ela nos faz sempre a mesma pergunta: "Afinal, que é que você está esperando?" Como dizia o bruxo D. Juan ao seu aprendiz: "A morte é a única conselheira sábia que temos. Sempre que você sentir que tudo vai de mal a pior e que você está a ponto de ser aniquilado, volte-se para a sua Morte e pergunte-lhe se isso é verdade. Sua Morte lhe dirá que você está errado. Nada realmente importa fora do seu toque... Sua Morte o encarará e lhe dirá: 'Ainda não o toquei...'"

E o feiticeiro concluiu: "Um de nós tem de mudar, e rápido. Um de nós tem de aprender que a Morte é caçadora, e está sempre à nossa esquerda. Um de nós tem de aceitar o conselho da Morte e abandonar a maldita mesquinharia que acompanha os homens que vivem suas vidas como se a Morte não os fosse tocar nunca".

Às vezes ela chega perto demais, o susto é infinito, e até deixa no corpo marcas de sua passagem. Mas se tivermos coragem para a olharmos de frente é certo que ficaremos sábios e a vida ganhará simplicidade e a beleza de um haikai.


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