Folha de S. Paulo


Depoimento: A Mooca, projeção de São Paulo

Nasci em Guaratinguetá (SP), um ano depois do quarto centenário de São Paulo. Com um ano de idade, eu já era mooquense. Sim, antes de sermos paulistanos, paulistas, brasileiros, os da Mooca somos mooquenses. E para sempre, ainda que se saia do bairro.

Passei a infância vendo e vivendo cenas inimagináveis na São Paulo de hoje. À noite, por exemplo, era muito comum os adultos se reunirem nas calçadas (os homens, com camisetas brancas do tipo regata, sentados "ao contrário" em cadeiras de madeira), enquanto brincávamos de pega-pega ou esconde-esconde.

Muitas vezes foi preciso encarar a madrugada na fila da Companhia União, na rua Borges de Figueiredo, para comprar o quilo de açúcar a que tínhamos direito. Era tempo de racionamento! Também nas madrugadas, ia-se ao posto de saúde, na rua Marina Crespi, para tomar a escassa BCG ou outra vacina.

A minha Mooca tinha (e ainda tem) casas e vilas. Os prédios eram poucos, praticamente restritos à nossa "Champs-Élysées" -a Paes de Barros, na qual havia também muitos casarões.

Apesar de todo o crescimento de São Paulo, até 2000 e pouquinho a Mooca se manteve calma, com o seu ar um tanto provinciano e o seu trânsito mais ou menos tranquilo, até que... Até que, há coisa de dez anos, chegou a hora de sofrer um estupro urbano, patrocinado (com a devida omissão do poder público) pela infrene e infame sanha do mercado imobiliário, que "descobriu" a Mooca.

Galpões centenários, em que funcionaram estabelecimentos comerciais ou industriais (o da União, por exemplo) não tiveram um fim digno, como o que teve o que hoje abriga o maravilhoso Sesc Pompeia. Os da Mooca foram e estão sendo pulverizados e transformados em conjuntos de paliteiros sem personalidade arquitetônica, em que famílias e famílias se empilham.

É claro que essas famílias têm seus automóveis, que entopem as estreitas ruas do bairro. Em determinados horários, entrar na saturadíssima radial Leste, rumo ao centro ou a outros bairros da cidade, é verdadeira aventura. A genial CET programa os semáforos com a sua proverbial competência, o que gera longuíssimas filas nas transversais da radial e congestionamento até nas áreas mais remotas do bairro.

A Mooca está perdendo o charme, e não ganhou nada em troca do que lhe está sendo impingido. Transporte público? Há -no padrão brasileiro, ou seja, um horror. Linhas de ônibus racionais, inteligentes, com traçados diretos? Nem pensar! Metrô? A estação mais próxima (Bresser-Mooca) fica praticamente no Brás. Ir de ônibus até lá é uma aventura, uma demorada aventura. Entrar num trem do metrô ali é outra aventura: em boa parte do dia, os trens são simplesmente "impegáveis".

A Mooca "cresceu", mas o fez no padrão paulistano e brasileiro: sem planejamento, sem intervenções urbanas que sustentassem (e limitassem!!!) as alterações provocadas pelo adensamento do bairro, sem gerenciamento inteligente do trânsito, sem transporte coletivo racional e de qualidade etc., etc., etc.

A Mooca de hoje me faz lembrar o poema "Minha Terra", de Manuel Bandeira, cujo verso final, mais do que antológico, é este: "Diabo leve quem pôs bonita a minha terra!". No caso da Mooca, o mais justo é pôr entre aspas o adjetivo "bonita", já que boniteza não é propriamente o que se vê na "nova Mooca". Destruição da memória é sinônimo de boniteza?

O que ocorre na Mooca é espelho do que aconteceu em outros bairros paulistanos, como o Tatuapé, onde morei do fim dos anos 80 até 2008. Se você quer ver como vai ficar a Mooca daqui a algum tempo, veja como é hoje o Tatuapé, com os seus trocentos prédios entulhados em ruas estreitas, muitas delas de mão dupla, com estacionamento permitido nos dois lados, conversões livres à direita e à esquerda, ônibus velhos e barulhentos que se espremem entre os carros etc., etc., etc. Uma maravilha!

Quero muito estar errado, mas o velho filme paulistano me faz crer que a Mooca é uma projeção do que piorará em São Paulo nos próximos anos. A "maior cidade do país" trata tão mal os seus habitantes que parece detestá-los.

Mesmo assim, não consigo deixar de me unir ao queridíssimo e genial Tom Zé, o baiano mais paulistano que há: "Porém, com todo o defeito, te carrego no meu peito.../ São, São Paulo, meu amor, / São, São Paulo...". É isso.


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