Folha de S. Paulo


'Rolezinhos' têm raízes na luta pelo espaço urbano, diz pesquisador

Como os protestos de junho passado, os rolezinhos são manifestações de uma cidadania insurgente cujas raízes estão na luta pelo espaço urbano que ocorre há décadas no Brasil. A análise é do antropólogo James Holston, professor da Universidade da Califórnia, em Berkeley (EUA).

"O Brasil vibra nos últimos 50 anos de cidadania insurgente. É uma coisa ótima para sacudir uma sociedade de muita desigualdade. As manifestações são necessárias e vão continuar. Até hoje, considerando o tamanho da desigualdade, há muita pouca violência. A violência maior é a da polícia", afirma, prevendo um "ano quente" para o Brasil.

Pesquisador da periferia paulistana desde os anos 1980, ele avalia que a politização do movimento foi provocada pela repressão exagerada e pouco inteligente. Autor de "Cidadania Insurgente" (Companhia das Letras, 2013), Holston tem ligações familiares com o Brasil e passa temporadas em São Paulo. Nascido em Nova York, estudou também filosofia e arquitetura.

Nesta entrevista, concedida por telefone desde os EUA, ele comenta o consumismo cantado no funk ostentação, trilha de 'rolezinhos': "Do ponto de vista político, significa o triunfo de um capitalismo deslumbrado, como ocorre no Brasil nos últimos 20 anos em todas as classes."

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Folha - Como o sr. avalia os rolezinhos?

James Holston - Os rolezinhos existem há tempos nas periferias. Frequentei muito o shopping Aricanduva por conta de minhas pesquisas na zona Leste. O shopping é a praia do paulistano. Essa juventude não está excluída dos shoppings. Eles são os viciados em shopping, estão entre os seus melhores fregueses. A diferença foi o número de pessoas nos rolezinhos. Deu medo nos lojistas. O fato de passear, brincar, paquerar nos shoppings se politizou agora por causa da repressão policial e da reação repressiva dos donos de shoppings.

Reprimir nos primeiros rolezinhos no final de dezembro foi uma reação exagerada, pouco inteligente e pouco ágil. A reação foi exagerada, como nos protestos de junho, que tiveram a repressão exagerada da polícia como grande estopim. O rolezinho nunca teve esse aspecto politizado. Agora virou movimento, já virou outra coisa. Virou uma expressão de conquista de espaço.

O sr. estudou os movimentos nas periferias de São Paulo no século passado. Quais são as diferenças em relação ao que ocorre hoje?

Por décadas, o coração da politização das classes mais humildes do Brasil foi conquistar o espaço, o terreno da casa, o bairro, a autoconstrução, a luta. A ocupação de espaço é um fundamento da política de todo mundo. As classes altas também ocupam, conquistam, defendem, segregam os espaços delas. As classes trabalhadoras ocupam e defendem os espaços, conquistando novos direitos de cidadania. A ocupação de espaço muitas vezes afronta as classes médias. Há em São Paulo uma tensão em torno do espaço que há anos não existia.

Porque antes as classes dominantes dominavam completamente. Agora, não. As classes mais humildes têm noção de direitos, do direito de ocupar, de viver, de circular. Essa é uma novidade, fruto de 30 anos de luta para ser incluído e não excluído na sociedade brasileira.

Nesse sentido, o rolezinho não é tão diferente das lutas dos pais, avós e bisavôs dos jovens atuais, que queriam também ocupar, se manifestar, circular nas periferias. O consumo foi sempre o centro. Na autoconstrução, o projeto da casa envolve muito consumo: tijolo, cerâmica, cimento, geladeira, TV, móveis. Os jovens hoje não consomem tantos objetos coletivos. O consumo hoje é mais individualista, de luxo entre aspas, de objetos pessoais.

Mas na época dos avós, não havia mais organização política? Como isso acontece hoje?

Sim, havia organizações de bairros, mães, igrejas, partidos que organizaram essa busca de melhoria, de cidadania. Isso mudou. Agora há mais organizações pela internet, em torno de temas, de identidades, questões culturais. Ainda existe muita organização local, muita luta pela propriedade, contra despejos, por melhorias nos bairros. As novas formas de fazer política convivem com as antigas. As novas formas falam do direito à cidade.

Um pouco diferente do que diziam os avós, que queriam melhorias residenciais. Os jovens hoje querem mobilidade, circulação, a conquista da cidade inteira, um lugar ao sol. Dizem que os jovens não querem fazer política de denúncia. Discordo. Há grupos que se organizam nas redes sociais para denunciar abusos de políticos, corrupção, violência policial.

Como o sr. explica o funk ostentação, espécie de trilha sonora de rolezinhos?

O funk ostentação é uma releitura paulistana do funk carioca, passando pela baixada santista. A pauta da música mudou da criminalidade para o consumo. Quero meus óculos, meu tênis; vida boa é ter essas coisas. O funk ostentação celebra o mercado, é um filme de capitalismo deslumbrante. Até que ponto ele mostra caminhos para a ascensão de pessoas é duvidoso. A sociedade brasileira sempre ofereceu aos jovens pobres duas formas para ascender na vida: música e esporte. É o que funk ostentação faz.

Mas essa ideia de consumismo exacerbado não se choca com a herança política de luta por espaço, que era mais coletiva?

Claro que se choca. O consumo na autoconstrução nos bairros nos anos 1970, 1980, 1990 era mais coletivo e mais família: geladeira, todo mundo trabalhando, construindo. Esse consumo de hoje é também de uma autoconstrução, mas superindividualista, personalista. Do ponto de vista político, significa o triunfo de um capitalismo deslumbrado, como ocorre no Brasil nos últimos 20 anos em todas as classes. É uma coisa que dá desespero em quem acreditava numa outra via para a esquerda brasileira. O consumo deslumbrado está em todas as classes no Brasil.

Foi lembrado que negros no passado foram impedidos de usar joias. O que este momento tem a ver com a história do Brasil?

Esse movimento de agora é uma continuação do que eu chamei de uma cidadania insurgente. Ela surgiu na década de 1960, mas hoje tem novas formas. Há ligação com a conquista de espaço social, de direitos. É a continuação de 50 anos da luta relacionada com a grande mudança na história do Brasil, que foi a ocupação das periferias, a urbanização da população.

Nas décadas de 1940, 1950, a vida urbana ofereceu aos brasileiros a possibilidade de escapar da pobreza e da dominação das oligarquias rurais. Hoje se vive uma continuação desse processo. As novas gerações estão dando continuidade às insurgências, desenvolvendo novas formas, expressões, instrumentos. Não quer dizer que tudo vai dar certo, que não haja critica. Mas vejo como uma cidadania insurgente.

Tem a ver com a discriminação de cidadãos. Os pobres são cidadãos, mas são discriminados. A grande luta dos últimos 50 anos foi conseguir mais igualdade, ancorada na ocupação de espaço. Hoje em dia o rolezinho também é uma ocupação de espaço. Os avós desses jovens também reivindicavam os direitos de circular na cidade. Hoje essa reivindicação pega a cidade inteira. Pega lugares que os seus avós que não podiam circular. O desejo e o objetivo aumentaram.

E o que mostra a reação aos rolezinhos?

A continuidade é impressionante. As elites sempre reprimiram as manifestações populares por conquista de espaço. Dizendo sempre que pobre tem que saber o seu lugar. Mas os pobres já disseram muitas vezes na história que queriam lugar na praça, na cidade.

E as elites reprimiram com muita força. Basta lembrar as rebeliões de escravos, de marinheiros, de operários. Há questões mais sutis, como os espaços de serviços nos apartamentos. A mensagem é de que o pobre tem que saber o seu lugar; pode circular humildemente, fazendo o seu serviço. Mas, se circula fazendo ostentação, mostrando que é dono de sua própria vida, tem carro, joias, ofende e afronta a elite brasileira.

Há ligação entre os rolezinhos e as manifestações de junho?

Há uma articulação politizada nos dois casos. A polícia tem que assumir uma culpa muito grande, pois teve uma reação exagerada. Os rolezinhos são continuidade dos movimentos de junho, pois têm a ver com ocupação de espaço, com circulação.

Tem também a ver com direitos. Se em junho os protestos foram por direito à circulação pela cidade, por saúde, educação, os rolezinhos se transformaram em luta por direitos: de ocupar espaço, de andar com grupo de amigos. São manifestações de uma cidadania insurgente, como em junho, dando continuidade a uma mobilização que tem 50 anos. Há diferenças; não há homogeneidade. Os rolezinhos são mais focalizados no consumo, na produção cultural, têm menos organização política. Mas podem vir a ter.

Quais os reflexos políticos dos rolezinhos? Eles vão crescer ou murchar?

É difícil prever. A rapaziada dos rolezinhos não quer ser politizada em demasia. Querem voltar à praia do shopping, para paquerar, zoar. Não quer dizer que não possam evoluir, ou outros grupos possam adotar a tática dos rolezinhos com outras finalidades. Acho que isso vai acontecer. Vai ser um ano quente no Brasil –e deveria ser. Porque as reivindicações de junho não foram atendidas e também não sumiram. O que vai acontecer com toda essa energia? Com a chegada da Copa, vai esquentar.

O gigante acordou?

Muitos disseram isso. Outros disseram que a periferia nunca dormiu. A cidadania insurgente está sempre presente. Esquenta e esfria dependendo de circunstâncias que são impossíveis de prever. O Brasil vibra nos últimos 50 anos de cidadania insurgente. É uma coisa ótima para sacudir uma sociedade de muita desigualdade. As manifestações de cidadania insurgente são necessárias e vão continuar. Até hoje, considerando o tamanho da desigualdade brasileira, há muita pouca violência. A violência maior é a da polícia. As elites falam que essa juventude é de novos vândalos. Não é verdade. As manifestações de cidadania insurgente não são violentas.

É a alegada cordialidade do povo?

É um povo inteligente e esperto, que entende que a violência não é muito produtiva. A ideia de cordialidade já foi quebrada pelos movimentos culturais. A sociedade brasileira é cruel; a violência foi pouca.


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