Folha de S. Paulo


Antropólogo vê busca por visibilidade e reação desproporcional a 'rolezinhos'

"É uma questão de não ser invisível, de aparecer, estar presente, participar desse mundo que eles imaginam que seja o mundo do consumo, do shopping." É assim que o antropólogo Everardo Rocha, que tem estudos sobre a relação entre consumo, culturas juvenis e espaço urbano, analisa o fenômeno dos "rolezinhos".

Para Rocha, professor da pós-graduação em comunicação da PUC-Rio, a sociedade contemporânea iguala visibilidade a consumo e o jovem de periferia busca ser reconhecido como igual diante do mundo do consumo.

"Aí é complicado porque não sei se querer participar do mundo do consumo é uma coisa boa em si mesmo, seria melhor participar do mundo da cidadania política, não como consumidor. Hoje há uma superposição das identidades de cidadão e de consumidor, o que é ruim. O ideal é que você fosse cidadão", diz Rocha.

Em entrevista à Folha, ele também critica a atenção midiática aos "rolezinhos", que considera "desproporcional". "Talvez estejam dando muita ênfase, toda hora pipoca alguma coisa nova e todo mundo fala, pensa, discute. Talvez as coisas não sejam tão novas assim, nem tão importantes assim."

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É possível determinar o que está na origem dos 'rolezinhos'?
Começam por causa de novas tecnologias de comunicação, que facilitam todos os encontros. Isso é típico de tecnologias que botam as pessoas juntas de alguma maneira.

Talvez estejam dando muita ênfase, toda hora pipoca alguma coisa nova e todo mundo fala, pensa, discute. Talvez as coisas não sejam tão novas assim, nem tão importantes assim. Em 2000 já houve ida ao shopping do movimento sem teto, do movimento da universidade popular.

Mas há semelhança entre aquele movimento e os atuais?
O curioso nessa história é que a dimensão política que havia em 2000, por exemplo, desaparece agora, ou pelo menos não é explicitada. Não sei se isso é para o bem ou para o mal. Ter um projeto político é interessante, significa representatividade, essas coisas de que a democracia precisa. Esse parece mais uma coisa de lazer, uma vontade de se expressar. Acho que tem muito a ver com a questão da visibilidade, as marcas, os espaços de consumo permitem visibilidade. É uma questão de não ser invisível, de aparecer, estar presente, participar desse mundo que eles imaginam que seja o mundo do consumo, do shopping.

É possível distinguir um objetivo que une a maioria dos participantes?
Tem a ver com uma forma de expressão jovem. Uma das características centrais de juventude é a questão da agregação, de estarem juntos, isso é muito importante. Por isso eles gostam tanto de participar das redes sociais, estão o tempo inteiro ligados nelas. O que me parece marcante nesses rapazes e meninas de periferia é essa vontade de aparecer, de estar em todos os espaços da cidade.

Mas isso é algo típico do jovem de periferia?
Acho que nele é mais agudo. O jovem precisa muito disso, do grupo e de visibilidade também. Ele está no meio de um processo de liminaridade entre as identidades de criança e de adulto, é tudo ambíguo e é natural que várias ambiguidades incidam nesse momento, nas culturas jovens. O reconhecimento, a visibilidade, é um dos aspectos que desempenham papel importante nesse tipo de ação.

Qual é a origem do desejo de visibilidade desse jovem que participa do "rolezinho"?
O mundo contemporâneo traduz muito a visibilidade por consumo, esse é o ponto. Por isso o shopping como símbolo disso. O jovem quer ser visto, reconhecido como igual diante do mundo do consumo. Aí é complicado porque não sei se querer participar do mundo do consumo é uma coisa boa em si mesmo, seria melhor participar do mundo da cidadania política, não como consumidor. Hoje há uma superposição das identidades de cidadão e de consumidor, o que é ruim. O ideal é que você fosse cidadão. De qualquer forma, essas coisas melhorariam muito se o Brasil fosse um país realmente dedicado à educação.

Como é que se consegue mobilizar tanta gente para um encontro ao vivo?
Acho que tem um grau de aleatoriedade, me parece inexplicável. Isso acontece porque caiu bem, num certo momento, para todos eles. Não sei se já se tentou antes e não deu certo, se amanhã vai se marcar e ninguém vai estar a fim de ir. Deu certo, a mídia começou a falar, o shopping a se preocupar, a polícia entra, todo mundo fica nervosinho, aí pronto, o negócio fica importante, há uma realimentação. O 'toplessaço' [protesto pelo direito de fazer topless, no Rio] foi um fiasco, como várias dessas marchas mais politizadas que são marcadas. Nesse caso, talvez por não ter uma bandeira, por ser apenas diversão, um passeio no shopping, começou a pegar. Tem as férias, a proximidade do Natal, quando respira-se consumo alucinadamente, tem gente que vai ao shopping tirar foto, tem todo um imaginário midiático-publicitário que empurra o crescimento dessas coisas todas, e eles acabaram indo ao shopping.

Por que esse tem sido um fenômeno de jovens das periferias?
Talvez porque eles sejam os excluídos desse mundo. Eles estão incluídos e excluídos ao mesmo tempo: conhecem e gostam das grandes marcas, que são planetárias, os jogadores e cantores usam, e ao mesmo tempo estão excluídos efetivamente do consumo de tudo isso. Falam também do funk ostentação, que eu não conheço bem, mas que parece que puxa para esse mundo, faz uma mediação importante entre esses jovens e o mundo do consumo.

Como os shoppings deveriam lidar com este fenômeno?
Acho que dá para acolher. Não vejo algo tão tenso. É claro que isso é caso a caso, não sei quantas pessoas cabem num shopping, de repente você pode inviabilizar o lugar. Mas acho que deveria haver uma negociação, não tem por que tencionar. Ao mesmo tempo, não pode parar o shopping, tem gente que ganha a vida ali dentro. É complicado. Imagina que entrem 500 pessoas no shopping gritando, pulando e tal. O shopping tem de aprender a lidar com isso, como acolher, é uma novidade, mas não estão fazendo nada, então por que proibir?

Aqui no Rio, onde há muitos shoppings perto de comunidades, eu vejo muitos jovens como os que estão fazendo o "rolezinho" em São Paulo, mas não assim, pulando e cantando. A novidade talvez seja que eles estão fazendo uma outra leitura do que é um shopping, isso é o que talvez esteja incomodando, as pessoas supõem que o shopping seja para comprar e eles estão dando uma outra leitura, fazendo uma outra narrativa daquele espaço. Suponho que esses meninos também acabariam consumindo alguma coisa se fossem agregados direito. O problema aí é a questão da quantidade, que pode desbalancear qualquer ambiente. Sinceramente, não sei como controlar isso.

Há preconceito na reação dos shoppings?
Preconceito, no sentido mais técnico, é inevitável na vida social, sempre há. Há um susto, o preconceito vem da surpresa com o inesperado, dessa releitura do lugar, da quantidade e do tipo de pessoa que está no shopping, que não é o que o tradicional frequentador do shopping imagina. Se eu vou num show gratuito na praia para 1 milhão de pessoas, minha expectativa é uma. Se eu vou no shopping, minha expectativa é outra. Então há um choque de expectativas, por causa dessa outra leitura que os meninos estão fazendo do shopping, e o preconceito vem daí, desse descompasso com as narrativas tradicionais, preconceituosas ou não, do que era o shopping.

Mas quais são as expectativas tradicionais em relação a um shopping?
É como a pracinha da cidade do interior, você vai lá passear, ver a moda, tomar um sorvete. E, de repente, acontece uma coisa fora dessa expectativa. E, na parte mais desagradável da questão, há uma expectativa de encontrar um certo biotipo dentro do shopping, e esses meninos não eram compatíveis com a expectativa de um shopping de classe média ou alta. Mas acho que, mais do que isso, a questão é a quantidade, que sai da expectativa.

Mesmo se fossem jovens de classe média ou alta?
Suponho que sim. Cantando, berrando, em grupo, o normal seria você dizer "o que é isso?". São duas coisas em jogo: o que está sendo feito e quem está fazendo. As duas coisas podem ser objeto de preconceito e de susto.

Como você vê a reação da sociedade, do Estado e da mídia a este fenômeno?
A mídia adora, né? Isso aí é ótimo, porque aí todo mundo fala, articulista, editorialista, gente indignada, gente contente, é um circo. Acho desproporcional. A convivência social se torna mais tranquila na medida em que as coisas são menos pilhadas. A gente vive num mundo pilhado, tudo vira uma questão, um "issue". Há formas mais inteligentes de lidar do que criando tensão, botando polícia. De repente daria para conversar, mas, sinceramente, não sei como lidar com isso, porque não sou administrador. Mas, para mim, qualquer administração disso passa por tolerância.

Quais os próximos passos desse fenômeno?
Eu, que vivi em ditadura pesada durante a juventude, gosto muito, acho que é manifestação, abre as coisas, permite a todos mostrar o que querem e o que não querem. Meu medo nisso é se a democracia vai suportar, se a tolerância vai ser maior, acolhendo todas essas diversidades num espaço democrático. Esse é o meu desejo. É importante tirar a tampa, eu vivi com ela em cima muito tempo, para mim isso é magnífico, me dá uma certa alegria de viver vendo isso. Mas é importante que haja tolerância e um aprendizado do Estado.

O "rolezinho" é um fenômeno tipicamente contemporâneo ou poderia ter acontecido no passado?
Antes, nós tínhamos grandes narrativas laicas de como ser no mundo, nos indicando caminhos, e tudo ligava com tudo, até ligar à ideia de um mundo melhor pela via da esquerda, da direita, o que fosse. Hoje, isso não existe mais, e isso é uma dificuldade importante, não identifico claramente um projeto, além [da vontade] de se manifestar e ter visibilidade. Se esse é o projeto político, ter visibilidade, isso está sendo obtido.

Agora, pensar nisso de uma forma mais encaixada com o projeto de um mundo coletivamente melhor, como era antigamente... Qualquer coisa que você falasse nos anos 1970, por exemplo, era encaixado nas grandes narrativas, que inexistem hoje. Então a gente não sabe o que essa expressividade, todas essas formas pelas quais as pessoas estão mostrando seus desejos, valores e vontades, para onde isso vai levar a sociedade. O fato é que vivemos numa democracia e essas coisas terão de ser acolhidas. Vamos ver se conseguimos manter a tolerância maior do que essas tensões.


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