Folha de S. Paulo


'Não estou mais sozinha', afirma mulher encarcerada por 22 anos

A mulher de 44 anos que, segundo a Polícia Civil, passou metade da vida em cárcere privado promovido pelo marido, em Campo Grande, dá uma risada tímida ao falar dos planos para este fim de ano. "Vou passar o Natal com meus filhos, sem medo. Ninguém vai tirar isso de mim."

Na quarta-feira (18), após uma denúncia anônima, o marido dela, o servente de pedreiro Ângelo da Guarda Borges, 58, foi preso na casa da família.

Ele nega que tenha agredido a mulher, mas confessa que mantinha os quatro filhos do casal, de 15, 13, 11 e 5 anos, sob constante vigilância, segundo a polícia. Dois deles nem frequentavam a escola.

"Agora tô feliz, graças a Deus, tô muito feliz mesmo, de coração. Todo mundo me ajudando, agora não estou mais sozinha", diz a vítima.

Depois da prisão de Borges, ela e os filhos foram levados a uma abrigo destinado a mulheres vítimas de violência. "Dormi tão bem, graças a Deus."

Em entrevista à Folha, a dona de casa disse que o marido sempre foi violento. "Ele bateu na primeira mulher, bateu na segunda mulher e depois em mim."

Borges ficava ainda pior quando bebia, conta. "Depois que passava, ele pedia desculpas, dizia que nunca mais ia me bater." Em algumas ocasiões, já sóbrio, ele perguntava quem havia batido na mulher. Ela respondia. "Você, ué, não lembra?". Ele ficava quieto, segundo ela.

Os filhos também eram agredidos. "No mais velho ele batia à vontade", lembra. De acordo com a Polícia Civil, um dos garotos teve o braço quebrado pelo menos três vezes pelo pai.

Em agosto, a mulher chegou a sair de casa com os filhos e denunciou o marido ao Conselho Tutelar, mas não conseguiu ir em frente e registrar um boletim de ocorrência. "Eu pensava em fazer isso, mas não tinha coragem de sair, de ir embora. Fui lá na delegacia, não tive coragem, voltei para casa, inventei que fui na igreja."

A última agressão aconteceu por causa de um pão caseiro que uma vizinha deu a ela e foi encontrado por Borges no sábado (14).

No dia seguinte, a dona de casa conta que o marido bebeu quase uma garrafa de aguardente e começou a brigar com ela, dizendo que não deveria ter aceitado o pão. "Me empurrou, jogou pinga na minha cara e saiu de perto".

Mais tarde, no mesmo dia, pegou um cabo de vassoura e o quebrou no braço da mulher. As agressões continuaram nos outros dois dias e, na terça-feira, ele ameaçou enfiar o pão na garganta da mulher.

"Meu guri falou para a gente ir embora, para ligar para a polícia. Eu só falei: 'Tô pensando'". O garoto teria respondido: "Mãe, o pai vai bater na senhora no resto da vida, vai deixar a gente preso pro resto da vida".

Na quarta-feira, vizinhos viram as marcas da agressão nos braços da mulher. Naquele dia, a Polícia Civil recebeu a denúncia e foi até a casa dela, para esperar Borges voltar do trabalho.

"Eu estava com medo de ir embora, a polícia falava que ia proteger a gente, mas eu não acreditava ainda. Aí meu guri, chorando, pediu para ir, dizia: 'Vamos, aproveita, vão cuidar de nós'", lembra a mulher. "Aí eu fui, chorando, com medo abafando no meu peito".

Ela foi levada a um posto de saúde, e Borges foi preso quando voltava para casa para almoçar.

Marido e mulher não se encontraram mais. Borges está detido no 4º distrito da Polícia Civil e teve a prisão preventiva decretada. "Sinto nada por ele, nada, nada. Se sentia, acabou tudo mesmo".

Daqui a seis meses, ela espera morar com o pai, com quem não se encontrava havia anos. "Ele [pai] tá fazendo a casa, mandou esperar um pouco, vai ligar para cá quando tiver pronta."


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