Folha de S. Paulo


Levar médico para periferia é 'admirável', diz pesquisador

As pesquisas sobre má distribuição geográfica de profissionais de saúde costumam focar os motivos pelos quais os médicos optam por não trabalhar em áreas rurais, remotas.

Indo na contramão desses estudos, Kabir Sheikh, pesquisador da Fundação de Saúde Pública da Índia, investiga o que os leva a ir para esses lugares e permanecerem em seus postos.

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Em entrevista à Folha, ele avalia programas adotados pelo governo brasileiro para lidar com a carência de médicos nas áreas periféricas do país, entre eles o Mais Médicos, que trouxe profissionais estrangeiros para atuar no interior do país.

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O pesquisador Kabir Sheikh, especialista em saúde pública
O pesquisador Kabir Sheikh, especialista em saúde pública

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Folha - Há algo de errado com a maneira como se está ensinando medicina no Brasil?

Kabir Sheikh - Não devemos ver os valores da profissão como algo misterioso ou exótico --qualquer um que tenha cuidado de uma criança ou de um parente idoso entende a profunda satisfação que isso traz. Em nossa era utilitária, deixamos de ver o desejo de servir como um fato básico da existência humana, mesmo uma necessidade. O sistema deve apoiar e estimular, em vez de desabilitar, o profissional com valores.

Por que o programa Mais Médicos não teve apelo entre profissionais brasileiros?

Em países como Índia e Brasil, as áreas rurais são vistas como zonas de perigo e subdesenvolvimento. Há duas hipóteses para o programa não ter atraído médicos brasileiros: a preferência por áreas urbanas e a falta de atratividade das vagas em áreas rurais.
A primeira é difícil de mudar, porque implica transformar percepções em massa. A segunda exige apenas vontade política e perseverança para garantir condições que tornem positiva a experiência de profissionais de saúde nessas áreas.

Existem características que fazem médicos mais aptos para o trabalho nas áreas rurais?

É possível que algumas pessoas sejam mais aptas. No entanto, há uma lógica contrária que sugere que as políticas devem ser inclusivas e não exclusivas. Até mesmo percepções fixas podem ser transformadas com exposição e aprendizagem, e não devemos negar a ninguém a oportunidade de se tornar um médico rural.

Como avalia as medidas do governo brasileiro para tentar melhorar a saúde pública?

Esforços multifacetados são sempre mais eficazes, em saúde pública, que intervenções isoladas. Para garantir que as pessoas usufruam de serviços essenciais, o governo pode e deve incluir medidas de curto prazo, para preencher lacunas existentes, como medidas de longo prazo, tais como trabalhar para que as instituições e os profissionais de saúde se tornem mais orientados para objetivos sociais.

Como avalia o Mais Médicos?

Recrutar médicos para trabalhar em áreas rurais e remotas é um objetivo admirável, mas sua eficácia depende de incentivos e vantagens monetárias e não monetárias para os médicos lotados nessas áreas. Boas condições de trabalho e meios para que as famílias dos médicos consigam encontrar empregos e educar seus filhos nesses locais, por exemplo.

O programa é criticado pela classe médica.

As organizações da classe médica se preocupam em proteger interesses de sua base. É importante envolver os líderes da profissão no início de deliberações de modo que os debates não
se polarizem.

Que tipo de conhecimento o médico pode adquirir servindo em uma área remota?

A visão típica de um médico de clínica é limitada. A medicina nos treina a pensar que estamos certos e que conhecemos o melhor para restringir o nosso quadro de referências aos problemas e suas soluções. Isso tem sua utilidade, especialmente para lidar com queixas graves e emergenciais.
Mas, em termos da capacidade de compreender e servir as populações rurais durante longos períodos, é uma visão limitada. Pensar sobre o que as pessoas precisam requer questionar a sua própria autoridade. Poucos médicos são capazes de fazer isso e ainda praticar a medicina tal qual ela é ensinada.


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