Folha de S. Paulo


Resenha: Saúde precisa evitar nova privatização, dizem especialistas

Há 25 anos, a Constituição definiu a saúde como direito amplo, universal para todos os brasileiros, independentemente de sua condição no mercado. Hoje esse princípio precisa ser reforçado, com o Sistema Único de Saúde (SUS), e o setor privado deve ser muito mais fiscalizado.

A discussão do tema está em "Saúde, Cidadania e Desenvolvimento", que reúne visões de 11 especialistas do setor --médicos, economistas, sociólogos. Os textos trazem avaliações sobre os modelos de saúde pelo mundo e sugerem mudanças.

"O que vem ocorrendo é um transplante da lógica da racionalidade privada do mercado para o interior do setor público estatal, que pode ser denominada de uma segunda onda de privatização da saúde, agora velada, não aparente, mas com profundas consequências e impactos sobre a construção da lógica da saúde como um direito", escreve a socióloga Amélia Cohn, organizadora do volume, lançado pelo Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.

Cohn, professora aposentada da USP, faz um histórico da saúde no Brasil. Identifica avanços e riscos. Critica o esquartejamento da seguridade social (Previdência Social, assistência social e saúde) e enxerga duas dinâmicas no país: a dos integrantes do mercado de trabalho e a dos que estão fora dele --ou são inseridos de forma precária. Para ela, é urgente a "desmercadorização do acesso aos direitos sociais".

A socióloga analisa a expansão dos planos de saúde para as classes C e D e identifica a incapacidade da agência em regular o setor. "Se a captura das agências pelos interesses privados é um fenômeno mundial, no caso do Brasil isso é extremamente acentuado", diz.

Os médicos José Carvalho de Noronha e Telma Ruth Pereira trazem números que esclarecem as diferenças na saúde brasileira. Por exemplo, tratam do número de equipamentos de ressonância nuclear magnética por milhão de habitantes. Se o Brasil dos planos de saúde fosse um país, estaria em quinto lugar (17,5/milhão), atrás dos EUA, da Grécia, da Itália e da Coreia, e melhor que lugares como Dinamarca, Canadá, França, Reino Unido. Já o Brasil do SUS, estaria em 15º lugar (2,5/milhão).

"Parece estar em marcha no Brasil um processo de acumulação perverso que, a despeito de todas as conquistas do SUS, pode vir a solapar o princípio da universalidade e da justiça inscritos na Constituição, no qual as necessidades de saúde e não a capacidade de pagar pelos serviços é o que deve determinar o acesso e uso desses serviços", alertam os autores.

Na avaliação dos médicos, a estrutura de saúde do país tem muitas e antigas sobreposições público-privadas e há notáveis interferências do setor privado sobre o interesse público. E o gasto do Estado com saúde é menor do que em outros lugares. Na Dinamarca, o dispêndio público é de 84,5% do total do setor (81,7% no Reino Unido e 76,5 na França); no Brasil é de 41,7%.

"O Brasil é, possivelmente, o único [país] com sistema universal de saúde, ao menos do ponto de vista legal, onde o gasto privado é maior do que o público", ressaltam os médicos. Cruzando uma série de dados, eles afirmam que investir em saúde é importante para a redução da desigualdade no país. "O choque de 1% no gasto com saúde enseja uma diminuição de 1,5% no índice de Gini [que mede a desigualdade]", calculam.

O livro, fruto de um seminário ocorrido no ano passado, traz textos avaliando as reformas de saúde realizadas nas últimas décadas em vários locais da América Latina --as influências recebidas do Banco Mundial, a situação econômica e o debate político nos países. Asa Cristina Laureli, médica e socióloga, nota as mudanças que a globalização trouxe para a medicina. "O capital financeiro como agente segurador é um novo ator emergente e poderoso", constata.

Ela analisa os casos da Colômbia e do México, onde as promessas de universalização não se tornaram realidade. Trata também das reformas na Venezuela, Bolívia e Equador, que se contrapuseram ao modelo neoliberal e ampliaram ao acesso à saúde.

Já o intrincado caso chileno é dissecado por Carolina Tetelboin Henrion, professora visitante da Universidade de Valparaíso. Ela lembra que a privatização imposta pela ditadura de Pinochet acabou, por exemplo, com as contribuições patronais ao sistema de saúde. Hoje ela diz que há um questionamento sobre o desalinhamento provocado por um sistema público submetido a regras privadas.

Ainda que muitas questões fiquem em aberto, o livro organizado por Amélia Cohn ajuda a repensar a saúde nesse quarto de século da Constituição. Falta esmiuçar o setor privado e ouvir os gestores públicos. Mas o tema do público e do privado, cerne do debate da obra, já dá um bom início de conversa.


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