Folha de S. Paulo


Especialista critica presença da polícia na abordagem a viciados

A abordagem ao usuário de drogas deve passar longe da rejeição, culpa e da polícia. O dependente deve ser olhado como uma pessoa que necessita de tratamento (e não necessariamente obrigatório) --tal qual um diabético.

É o que defende o italiano Gilberto Gerra, 57, chefe do departamento de prevenção às drogas e saúde do UNODC, braço da ONU sobre drogas.

No Brasil para um simpósio internacional sobre o tema, Gerra fez ressalvas à liberação das drogas por referendo ou uso medicinal da maconha, defendeu uma abordagem qualificada ao usuário de drogas e criticou a internação compulsória massiva nas cracolândias, como abre brecha um projeto de lei em discussão no Senado.

Folha - Qual é o cenário brasileiro frente ao de outros países?
Gilberto Gerra - A situação não é tão ruim. Há três situações. A primeira é o uso recreacional, aparentemente sem um grande impacto de saúde. A segunda é a clássica dependência, que afeta qualquer país. É preciso uma resposta imediata de serviços. Nenhum administrador pagaria salários se você tem uma quantidade tão pequena de pacientes internados.

O que está acontecendo?
Esses centros, evidentemente, não são capazes de atraírem os pacientes. Você tem uma terceira área, que é a dependência extrema nas ruas, a cracolândia. Alguém comentou aqui no evento que qualquer mãe com um filho em uma organização criminosa usando drogas deveria receber ajuda de uma instituição com tratamento compulsório, pelo menos no começo. Isso é completamente errado.

A internação compulsória não é uma solução?
Não resolve o problema, está atrasando. Se todas as mães com tiverem que depender de um tratamento compulsório para convencer seus filhos a se tratarem, está completamente errado. Se a pessoa não está engajada na ideia de buscar tratamento, o tratamento permanece ineficaz. É totalmente antiético usar o tratamento compulsório por conta da violação da autonomia do paciente. Só deveria ser usado em raras situações que são justificáveis por extremo risco e não aceita nenhuma aproximação com a instituição de saúde.

Aqui no Brasil, vemos crianças usuárias de crack dormindo nas ruas levadas pela polícia...
E depois? Você acha que as comunidades terapêuticas deveriam estar prontas para pegar as pessoas das ruas em sua estrutura amanhã cedo? Absolutamente não. Se você pegar 20 usuários das ruas de repente, o que acontece? Você precisa chamar os bombeiros, há uma situação incontrolável. Se eu estivesse essa manhã no Senado, eu perguntaria a eles: se você quer criar o tratamento compulsório e você não tem as comunidades disponíveis, onde você vai colocar essas pessoas? Prisões? Campos de detenção? Campos de trabalho? Auschwitz, Dachau? Eles têm que nos explicar, sem a visão ideológica de limpar as ruas, onde você coloca essas pessoas, para fazer o que, com que profissionais e que recursos.

Os governos não podem usar esse argumento de 'risco extremo' para colocar toda a cracolândia em internação?
Não, porque essa é uma visão ideológica de nossos pacientes. Posso dizer que situações extremas são uma de mil. Às vezes é preciso tirar cinco minutos do seu tempo para conversar, não para chamar a polícia. A outra questão é começar a tratar esse paciente como uma doença normal. Por causa da comida que você come existe a diabetes. Não existe diferença entre ser viciado e diabético.

Qual é o limite do uso recreativo das drogas? O que acha da solução do Uruguai?
Até antibióticos precisam de prescrição. E o dono de um café, sem conhecimento das consequências, vai vender para um jovem? E se esse rapaz é bipolar? Quem vai ser o responsável? É preciso muito cuidado para dizer o que Uruguai está fazendo. É legalizar? Se eles estão simplesmente despenalizando, sem punir o usuário por posse, eu concordo.

Então eu poderia fumar um baseado aqui?
Você não deveria ser punido, se você não oferecer esse baseado para mim. Chamamos de despenalização e não de descriminalização. Sabe por quê? Continua crime como uma mensagem.

Mas não seria melhor comprar sob o controle do estado?
É difícil de isso acontecer. Nunca haverá uma legalização simultânea em todo o planeta. Mesmo que um legalize, no outro será ilegal e haverá tráfico na fronteira. E há outra situação problemática: você gostaria de ter uma cirurgia com um médico que cheirou cocaína?

Mas isso também vale para o álcool e ninguém gostaria de ser operado por um bêbado...
Eu não sou favor da legalização da cocaína e a favor de um absoluto controle de álcool.

O que você acha do uso medicinal da maconha como é na Califórnia?
Há componentes que poderiam ser usados em intervenções farmacológicas. Mas para isso existem regras. Um laboratório farmacêutico leva anos e gasta muito dinheiro até registrar um medicamento. Seria mais fácil colocar dinheiro na mídia e em ativistas para propor referendos sobre um novo antidepressivo. Por que dar um tratamento diferente para a maconha? Certamente a maconha não causa conflitos sociais como roubar um banco, causar desordem. Mas afetar o desenvolvimento emocional do seu filho é uma questão mais leve? Isso é a ciência que diz, não é evidência baseada na fantasia.


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