Folha de S. Paulo


Para pediatra, profissão sofre com a falta de vínculos

Plantões superlotados, consultas mal pagas, pais estressados que ligam na madrugada ou que não aparecem no consultório médico.

Consultas privadas são mais lucrativas para médicos

Essas e outras situações levaram o médico Cláudio Galvão de Castro Junior, 45, a desistir da pediatria geral e passar a exercer a hematologia e a oncologia pediátrica.

"Como estabelecer vínculo com o paciente dessa maneira?", diz ele, que atende no Hospital Albert Einstein.

A seguir trechos do seu depoimento. (CLÁUDIA COLLUCCI)

Victor Moriyama-25.abr.13/Folhapress
O médico Cláudio Galvão de Castro Junior, que deixou a pediatria e partiu para a oncologia no Hospital Albert Einstein, em São Paulo
O médico Cláudio Galvão de Castro Junior, que deixou a pediatria e partiu para a oncologia no Hospital Albert Einstein, em São Paulo

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"Decidi fazer pediatria depois de passar por um estágio no Emílio Ribas durante a epidemia de Aids no início dos anos 90.

Comecei a aprender o valor do vínculo entre o médico e o paciente. Meu pediatra tinha sido pediatra da minha mãe e depois foi da minha filha. Clinicou até os 80 anos.

Exerci a pediatria-geral do início da residência em 1992 até o final de 1998. Depois, passei a me dedicar exclusivamente à oncologia pediátrica, ao transplante de medula óssea, e à hematologia.

Mesmo com o convívio diário com situações limítrofes, com a morte, acho que tenho qualidade de vida melhor que nos tempos de pediatria.

Os plantões nos prontos-socorros são um capítulo à parte. Lembro de ter atendido cem pacientes em um plantão de 24 horas.

Uma vez, havia uma centena de pessoas esperando em grandes bancos que ficavam defronte a uma mesa onde dois pediatras atendiam. Dirigi meu olhar a uma mãe com um menino de uns dez anos no colo.

Estranhei uma criança tão grande estar no colo e perguntei para a mãe se era sempre assim. Ela disse que não, que era uma criança normal mas que naquela manhã acordara com febre. Olhei para a pele e vi manchas comuns em quadros de meningococemia, gravíssimo.

Mandei-a para a sala de emergência. Caso a atendesse na ordem de chegada, talvez não tivesse sobrevivido.

Os pediatras, assim como qualquer médico em prontos-socorros, lidam com uma população estressada. Quantas e quantas vezes não fui ofendido ou ameaçado?

No sistema privado, muitos pediatras são reféns do telefone. Certa vez fui jantar com um colega pediatra. O jantar, num sábado, foi interrompido oito vez, por ligações de diferentes mães.

Por isso, alguns colegas recusam-se terminantemente a atender em consultórios, trabalhando apenas em prontos-socorros e UTIs.

No começo da carreira, tinha um consultório misto, que atendia pacientes tanto pediátricos quanto oncológicos. Ao contrário do que eu poderia supor, as mães das crianças que não tinham câncer ligavam muito mais do que outras, com filhos lutando contra o câncer.

A explicação talvez seja o vínculo formado com os pacientes com câncer.

Esse foi um dos principais fatores para desistir da pediatria-geral: a falta de vínculo, que fica dificultada nesse modelo de atendimento.

Lembro-me que muitos pais levavam os filhos a uma consulta e depois sumiam, ou marcavam consulta e nem ligavam para desmarcar.

Sem contar que, pelo que os planos pagam hoje por consulta, R$ 30, R$ 40, muitos pediatras precisam fazer volume para continuar com o consultório aberto. É uma consulta atrás da outra. Como criar vínculo?

Infelizmente, quem quiser ser pediatra e ter consultório deve esperar baixa remuneração, ligações a qualquer hora, pais cada vez mais ansiosos, hospitais sem leitos em número adequado e plantões estressantes. A pediatria-geral tem de ser valorizada. Uma das coisas mais gratificantes, a relação médico-paciente, está se perdendo. "


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