Folha de S. Paulo


Opinião: Não haverá justiça sem punição do mandante

Entre nós, a vida humana é artigo de pouca valia.

No Brasil, a disputa pela posse de um relógio ou de um celular pode acabar em morte, realidade trágica que se choca com o mito da sociedade acolhedora e amorosa que insistimos em cultivar.

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O episódio das 111 mortes do Carandiru permanece vivo em nossa memória, nem tanto por lamentarmos o destino dos que perderam a vida, mas por atormentar a consciência nacional.

O que aconteceu naquela noite de 1992, foi uma demonstração inequívoca da violência institucionalizada por nós mesmos.

Naquela manhã de sexta-feira, eu havia reunido os travestis presos no pavilhão 5 para falarmos sobre prevenção à Aids: 72% eram HIV-positivos.

Perto das 11h, o diretor do presídio apareceu na porta, desejou bom dia a todos e me convidou para um café.

Era o doutor Ismael Pedrosa --anos depois assassinado numa emboscada em Taubaté--, homem destemido que andava pela cadeia como se estivesse no quintal de casa.

O café durou mais de uma hora; quando dei por mim passava de 13h30. Expliquei que já estava atrasado e que não tinha cabimento fazê-lo perder tanto tempo.

Ele respondeu que era sexta-feira, dia em que todos se ocupavam com a faxina nas celas, para receber a visita dos familiares. "É o dia mais calmo, dá até tédio", disse.

No fim da tarde, quando soube que a TV mostrava cenas de uma rebelião, achei que devia haver engano.

O denominado Massacre do Carandiru foi uma carnificina gratuita que enfraqueceu o poder do Estado e abriu espaço para que o crime se organizasse em facções suficientemente fortes para impor suas leis, nas prisões e fora delas.

A confusão começou num jogo de futebol, com uma briga entre dois homens de quadrilhas inimigas que há tempos se estranhavam nas galerias do 9, pavilhão para onde eram encaminhados os novatos no universo prisional.

Do campo, o confronto subiu para os andares. O enfrentamento provocou algumas mortes e deu origem a um quebra-quebra generalizado, com fogo nos colchões.

A inexperiência dos que se achavam detidos no 9, entretanto, foi causadora de um erro primário: não fizeram reféns; deixaram os funcionários sair do pavilhão.

Várias unidades da PM entraram na cadeia. A partir daquele momento o diretor foi substituído por superiores.

A casa tinha experiência em rebeliões como aquela. Qualquer carcereiro mais velho tomaria as medidas rotineiras: cortaria a água, a comida e a luz do pavilhão. Sem reféns, não havia pressa. Na manhã seguinte, os presos estariam prontos para negociar.

O próprio doutor Pedrosa insistiu que resolveria o problema se lhe dessem a oportunidade de conversar com os amotinados. Diante da negativa, dirigiu-se ao portão do 9 para fazê-lo à revelia. Não teve tempo: "Fiquei prensado contra a parede, enquanto soldados passavam na correria."

Passados quase 21 anos, os policiais que invadiram o pavilhão vão a julgamento. Haverá justiça? É claro que não.

Primeiro, porque o mandante do crime não sentará no banco dos réus. O nome do criminoso que deu a ordem para invadir foi para o túmulo em que está enterrado o coronel Ubiratan, comandante da operação.

Imaginar que a ordem tenha partido do coronel é menosprezar a inteligência alheia: um policial jamais tomaria uma iniciativa daquelas sem consultar seus superiores.

O que esperava o mandante? Supunha que os soldados entrariam no escuro, num pavilhão em chamas, com metralhadora em punho e cachorro na coleira, para dialogar com homens amotinados?

Segundo, porque nem todos dispararam suas armas. Como não foram realizados exames de balística, como identificá-los? Simplesmente, por terem participado da ação poderíamos dizer que todos são culpados? Eles não se dirigiram à cadeia por vontade própria, cumpriam ordens.

Não sou conivente com a violência, nem tenho simpatia pelos PMs que tiraram tantas vidas. Nenhum foi obrigado a metralhar homens desarmados. Mas é obrigatório reconhecer que o mandante foi uma autoridade pública e que o Estado deve assumir a responsabilidade pelo massacre.

Drauzio Varella é autor de "Estação Carandiru"

Editoria de Arte/Folhapress
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