Folha de S. Paulo


Herói da enchente de 81 em Petrópolis perdeu filha e netos nas cheias deste ano

Chuva forte, casas equilibradas na encosta, desmoronamento e mortes. Jamil Luminato, 53, vive hoje, exatamente no mesmo lugar, drama semelhante ao que protagonizou há 31 anos.

Envie seu relato ou imagem das chuvas no Rio
Promotoria pede obra contra transbordamento de rios
Número de mortos por chuvas chegam a 28 em Petrópolis

Em 1981, quando deslizamentos mataram dezenas de pessoas em Petrópolis (RJ), o hoje pedreiro transformou-se em símbolo da catástrofe e herói ao ajudar a salvar vítimas dos soterramentos.

Sua foto correu o país e deu ao fotógrafo Carlos Mesquita, morto no ano passado, o prêmio Esso Regional, um dos principais do jornalismo brasileiro. Na primeira página do "Jornal do Brasil", a imagem mostrava Jamil, então com 21 anos, carregando o corpo de um bebê morto.

A criança acabara de ser retirada por ele do meio do barro, no local onde Jamil nasceu, foi criado e mora ainda hoje, o bairro Independência.

Na segunda-feira, o pedreiro tentou fazer o mesmo. Dessa vez para salvar a filha Drucilane Alves Luminato, 31; o genro, Rodrigo Vale; e dois netos, Rodrigo de Oliveira Valle Junior, 4, e João Vitor Alves do Valle, 2. Todos soterrados por um novo deslizamento.

Com exceção do genro, que continua na UTI, todos morreram. Ontem, Jamil se preparava para os enterros.

"Conseguiram tirar minha filha viva, mas ela acabou morrendo no hospital", disse o pedreiro.

Na noite de domingo, quando a tragédia se repetiu em Petrópolis, Jamil ainda tentou alertar a filha por telefone dos riscos, mas era tarde.

"Quando a gente deixa a casa para trás, muita gente mexe. Hoje mesmo quase pegaram a moto do meu genro", disse, tentando justificar a suposta resistência da filha em deixar o local.

Ele diz que, depois da tragédia de 1981, a prefeitura disponibilizou abrigos provisórios para quem havia perdido a casa, o que não foi o seu caso. No entanto, nada foi feito para retirar as pessoas dali.

"A gente sabe que lá é área de risco. Mas vamos para onde? Não temos condição de comprar um apartamento."

A mudança que Jamil esperava no início dos anos 1980, após se tornar "herói" entre os vizinhos, não veio. Ali, ele se casou, teve cinco filhos e três netos. Todos foram morar no mesmo lugar.

Estimulado pela experiência do resgate ele diz que tentou ingressar no Corpo de Bombeiros, mas foi rejeitado por ter baixa estatura. Acabou virando pedreiro.

Jamil também foi protagonista de um documentário. "Primeira Página", de Eduardo Escorel, tentou reconstruir as etapas que levaram à foto de Carlos Mesquita.

Escorel disse que, quando viu as notícias dos deslizamentos desta semana, as cenas lhe remeteram ao filme.

"Cheguei a comentar em casa: 'É o mesmo lugar'. Hoje, aquela foto tem uma outra dimensão, a de uma tragédia da qual nós não conseguimos nos livrar."

O pedreiro diz não se lembrar do nome da criança que ele carrega na foto nem dos detalhes dos resgates de 1981. "Coisa ruim a gente tenta esquecer; coisa boa a gente tenta guardar para lembrar."

O sentimento em relação ao bairro onde vive é dúbio.

"Se tivesse condições de sair, saía. Mas foi o que conseguimos construir com o nosso dinheiro. Já temos amigos, vínculos ali. Vamos deixar isso tudo para trás?"

Procurada, a Prefeitura de Petrópolis informou que reunião realizada ontem com representante do Ministério das Cidades tratou dos repasses para projeto de revitalização e reurbanização do bairro.

Se a inércia do poder público contribuiu para que Jamil permanecesse por mais 31 anos no mesmo lugar da tragédia de 1981, a burocracia voltou a ser inimiga.

Os corpos dos dois netos, desde segunda-feira no IML, não foram liberados pela Polícia Civil e ontem o pedreiro voltou para o Independência sem conseguir fazer o enterro de ninguém da família.


Endereço da página:

Links no texto: