Folha de S. Paulo


'Ele tentou me jogar da janela', diz vítima de violência doméstica

Médica obstetra, empresária da saúde, mãe de quatros filhos, hoje com 14 a 18 anos, Sofia (nome fictício), 47, foi casada com um médico por 13 anos, agredida durante 11 e espancada na frente dos filhos nos últimos três anos de casamento.

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A seguir, o depoimento dela à Folha:

Moro em Vila Velha, tenho quatro filhos, sou separada há sete anos. Minha filha mais velha tem 18, as outras, 16, e o mais novo, 14. Fui casada por 13 anos. O pai das crianças tem 52 anos e é médico também.

Na situação em que separei, de modo judicial, por risco de vida dos meus filhos e meu, procurei uma juíza da Infância e Juventude, que pediu que o pai das crianças se afastasse do lar.

O oficial de Justiça e um policial deram ordem para ele sair, mas ele me seguia de carro, corria atrás, fazia cilada, me fechava na rua. Não aceitava os 500 metros de afastamento.

Meu irmão teve que botar uma porta de ferro na entrada do meu consultório, porque uma vez ele entrava e queria me agredir e, na outra vez, deixava um buquê de rosa.

Ele tentou me jogar da janela, são 16 andares, [morávamos no] último andar do prédio.

Falava que eu teria uma vida breve, ou que se não acabasse com minha vida, ia matar as crianças e falar que eu tinha matado, e que ia me botar na cadeia.

Dizia que cada filho nosso valia R$ 50 mil para um juiz. 'Eu dou R$ 200 mil limpinhos [para o juiz] e vou tomar seus filhos.'

Eu tinha fobia de entrar no fórum, de saber que alguém era juiz. Tinha que fazer terapia antes das audiências para conseguir entrar no fórum. A palavra 'juiz' me perseguiu muito tempo como uma coisa ruim.

Se eu tinha medo de juiz, imagina alguém que não tem acesso à mídia, a nada. É muito difícil. Por isso que às vezes as pessoas falam: 'Por que a mulher não sai [da relação]?' E eu falo: 'Ela não consegue sair sozinha. Não tem como.'

A pessoa se apodera da sua vida, você perde sua identidade, sua autoestima, perde tudo. Você não se reconhece mais como você.

Quando você faz terapia, você pensa: 'Como eu aceitei aquilo?'.

ESPANCAMENTO

Às vezes, ocorria o espancamento porque a criança esquecia uma tampa de pasta de dente aberta. Ele ficava bravo comigo, porque eu era relapsa, vagabunda, deixava a pasta de dente aberta.

O papel higiênico pode rodar para a frente ou para trás. Para ele, tinha que rodar sempre para a frente. Se não fosse, é porque eu não tinha tido tempo de ver, porque no mínimo tinha ficado pendurada no telefone com algum homem.

Eu não podia mexer em computador, porque podia namorar no bate-papo. Só aprendi informática depois que me separei, mesmo sendo médica.

A faca também não podia ficar suja de manteiga na mesa. Qualquer coisa que o incomodasse era hora de ele começar a conversar, de começar a engrossar.

Colocava os filhos e eu num sofá e começava um interrogatório sobre coisas antigas: 'E aquele dia que você foi no shopping com sua mãe, que horas você chegou lá?', dizia, mas a criança não sabia responder.

Quando ele achava que a resposta não era o bastante, dizia: 'Agora vocês vão ver como uma vagabunda apanha', e batia na frente deles. Eles tinham cinco, três e um ano.

Violência doméstica é gradual. Você leva um empurrão, um apelido, e dali começa uma sequência de coisas.
Se ele se sente pressionado no trabalho, chega em casa e você paga o pato.

Toda a vez que ele abria a porta, todo mundo ficava de 'stand-by'. Dependendo do tom de voz a gente ficava sabendo se ia haver espancamento naquela noite ou não.

FILHOS E CULPA

Inicialmente, ele batia [nas crianças] por tabela. Se ele estava me batendo e alguma criança tentava puxar, ele dava um chute, um 'tapão', e a criança voava longe.

Se ele estivesse pisando em mim em cima da cama, coisa que fazia muito, e a criança subisse, ele a empurrava.

A primeira vez em que ele foi direto [em um dos filhos] foi quando ele suspendeu a mais velha pelo pescoço. Eu estava no andar de cima, as crianças me chamaram, eu desci correndo e perguntei: 'O que está acontecendo?'.

Minha filha respondeu: 'Nada, mãe. A senhora não vai fazer nada mesmo.'

Até então éramos impotentes. Na época ela tinha 11 anos. Desde os nove ela dizia para fugirmos.

Quando ela disse que eu não ia fazer nada, pela primeira vez eu me senti culpada por eles [filhos].

O que motivou minha saída foi o risco de vida dos meus filhos.

Até então, eu tinha outro sentimento de culpa, pois quando ele fazia o espancamento, no outro dia ele falava: 'Tá vendo? Se você deixasse a faca direitinho no lugar não tinha acontecido nada disso'.

No último ano, o espancamento era toda semana. As agressões duraram 11 anos. Os espancamentos foram nos últimos três.

SEM AR, SEM SAÍDA

No último ano ele fez coisas que me assustaram muito, como enforcamento e restrição respiratória --ele subia em cima do meu peito com os dois joelhos e eu não conseguia respirar.

E outra coisa: ele bateu nos meus pés. Pegou um sapato e bateu no meu pé, porque no pé não fica marca.
Antes disso eu tinha muito hematoma. Usava bota, meia escura, mesmo no verão. Eu tinha muita blusa de gola alta e de manga comprida.

Uma médica que trabalha comigo viu as marcas e queria me levar ao IML para provar as agressões. Mas provar o quê, e para quem? Eu não via saída, e se você não vê saída, você não rema.

Eu vivia na esperança. Ele batia e ia trabalhar. No outro dia, no meio da tarde, ligava e falava que me amava muito e amava as crianças, que nunca mais ia machucar ninguém. Mas à noite já voltava de cabeça virada.

Com o passar do tempo, aprendi que, se eu não me mexesse durante o espancamento, as crianças não vinham me ajudar, então não acontecia nada com elas. Aí eu só apanhava e ficava quieta.

Você aprende a apanhar de forma que agrade o agressor, para proteger as crianças.

Até entrar na Justiça, receber pensão, eu passei aperto. O agressor sempre força a volta pelo aperto financeiro que a mulher fica com os filhos. Meu irmão chegou a fazer compras para mim, logo eu, cirurgiã com anos de trabalho.

Primeiro, ele afasta seus amigos. Depois, sua família. Você fica isolado com seus filhos e pensa: 'Quem vai acreditar em mim?'.

Se ele se sentar aqui e contar a história dele, você vai pensar: 'Que mulher mentirosa, que homem bom'.
Hoje ele tem contato com as crianças. A primeira coisa que me ensinaram [na terapia] é não botar ninguém contra ninguém.

Eu sou uma sobrevivente. Se a mulher não se vê como vítima, mas como sobrevivente de uma pessoa que não é normal, ela consegue sair.

SUPERAÇÃO

Muitas senhoras chegam hoje [no hospital em que trabalho] e dizem que estavam na cadeira com o netinho e bateram o braço. Aí eu falo: 'Tem certeza? E esta marca aqui?' Ela responde: 'É que eu trabalho muito em casa'. Aí eu falo: 'Eu também já trabalhei muito na casa, já caí muito de cadeira, a senhora já caiu da escada?'

Com muitas mulheres eu converso, mas com muitas não tenho tempo de conversar. Toda semana tem [casos no hospital] de sete a dez vítimas.

Violência doméstica é grave. O custo hospitalar é alto, o custo para o Estado é alto, o custo para a sociedade é alto. O que você fabrica de uma violência doméstica? Os filhos da violência, quem são? Muitos se adaptam, levam sua própria vida, mas muitos não conseguem.


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